quarta-feira, 4 de março de 2009

O Processo de Expansão Mundial do Capital

O PROCESSO DE EXPANSÃO MUNDIAL DO CAPITALISMO

Marcelo Buzetto[1]


Introdução

No mundo contemporâneo, “Tudo o que é sólido desmancha no ar, tudo o que é sagrado é profanado, e os homens são (...) forçados a enfrentar com sentidos mais sóbrios suas reais condições de vida e sua relação com outros homens”.[2]

A velocidade das transformações econômicas e sociais promovidas pelo desenvolvimento capitalista nos levou à necessidade de tentar compreender a lógica imanente deste processo, pois vivemos numa época onde a discussão sobre os problemas econômicos, políticos, sociais e culturais - e sobre a resolução de tais problemas - aparece não somente como uma necessidade de alguns intelectuais que fazem do conhecimento um prazer egoísta, mas sim como uma possibilidade da humanidade responder aos problemas que ela própria criou, buscando com isso a construção de uma sociedade verdadeiramente humana.

Percebemos, após a leitura de uma série de textos relacionados à origem e ao desenvolvimento do modo de produção capitalista, que vários problemas amplamente discutidos por autores dos séculos XVIII, XIX e XX ainda conseguem estimular inúmeros confrontos entre aqueles que pretendem defender, reformar ou destruir o mundo das mercadorias criado pela sociedade capitalista.

É claro que a discussão que se faz na atualidade está enriquecida com muitas transformações, tais como: as constantes inovações tecnológicas, o desenvolvimento dos meios de transporte e de comunicação, a criação de produtos verdadeiramente mundiais, a expansão do mercado mundial, as mudanças nas relações de trabalho e na organização da produção e da distribuição das mercadorias, a ampliação dos fluxos financeiros internacionais e do capital especulativo e a capacidade de organização das classes sociais na defesa de seus interesses.

Nesse sentido, tem nos chamado a atenção a “popularização” e a vulgarização do termo “globalização”, que aparece na mídia mundial como um processo novo, como uma nova forma de intercâmbio entre os países, ou melhor, entre os mercados, que surge como resultado de uma suposta “nova ordem mundial”.

Quando nos referimos ao mundo contemporâneo estamos falando do mundo capitalista, da sociedade produtora de mercadorias que se desenvolve com muita rapidez à partir dos séculos XIV e XV, e que mais tarde promove o desenvolvimento da industria e da industrialização, forçando todo o globo a se integrar a um mercado cada vez mais mundializado, porém um mercado que não consegue eliminar as desigualdades próprias deste desenvolvimento, criando com isto um mundo “unificado” sob a lógica do capital e das mercadorias, ao mesmo tempo em que as grandes potências estipulam as regras para a convivência internacional, gerando uma divisão internacional do trabalho desigual. Se este fenômeno é a tal da “globalização”, isto já vem ocorrendo no mundo desde os séculos XV e XVI.

É sobre esta desigualdade inerente ao processo de reprodução ampliada do capital e do capitalismo, e sobre a utilização dos termos internacionalização, mundialização e globalização enquanto instrumentos de análise da expansão do mercado mundial capitalista e das relações internacionais que pretendemos nos debruçar neste pequeno texto, pois tais temas são vistos por nós como de fundamental importância, pois afetam direta e/ou indiretamente a vida de todos os indivíduos, em qualquer lugar do planeta.

Pequena História da Expansão Mundial do Capitalismo


1. Colonialismo e Globalização do Capitalismo


Não pretendemos aqui repetir o que uma série de autores já fizeram quando trataram do surgimento do modo de produção capitalista. Apenas iremos nos apropriar de alguns conceitos e idéias de alguns estudiosos do capitalismo para podermos ilustrar com mais clareza nossa concepção sobre a expansão mundial deste sistema e de suas relações sociais, econômicas, políticas e culturais.

Podemos falar que os romanos, na Antigüidade, tiveram a pretensão de expandir seu modo de vida, sua cultura, sua organização social, econômica e política, portanto, pensaram em espalhar pelo mundo tudo aquilo que Roma que fora criado pela civilização romana. Tiveram suas colônias, conquistaram territórios, e buscavam a integração dos mesmos ao Império. Aqueles povos que não aceitavam a dominação do Império Romano, que não aceitavam a “globalização” das relações econômicas, sociais, políticas e culturais impostas pelos romanos eram chamados de “bárbaros”. Mas Roma não conseguiu colocar o mundo a seus pés, fracassou em sua tentativa de conquista de todo o globo. Também os fenícios, exímios navegadores, fracassaram em suas tentativas expansionistas. Outros povos e impérios da antigüidade também não conseguiram impor suas regras em todas as regiões do mundo.

É somente com a crise na sociedade feudal e o advento do Renascimento e do Mercantilismo que temos o início da construção de uma economia mundial, de um sistema de comércio que começa a adquirir um caráter verdadeiramente internacional.

A fome, as guerras e as doenças, aliadas à crescente influência do humanismo renascentista, que cada vez mais afirmava a capacidade do indivíduo compreender e transformar o mundo, cavavam lentamente a sepultura onde seria enterrado o mundo feudal. Ao mesmo tempo, uma nova sociedade ia se desenvolvendo nas entranhas da Europa medieval, uma sociedade onde a agricultura de subsistência não teria mais o papel central, onde o lucro e a usura deixavam de ser proibidos, e onde a propriedade privada tornava-se a forma predominante de apropriação e uso da terra.

O desenvolvimento crescente do comércio na Europa ampliava a ligação entre cidades de um mesmo país, entre países de uma mesma região, e entre países de diferentes regiões e/ou continentes. Quando, principalmente a partir do século XIV, os banqueiros e os comerciantes (burgueses) começam a acumular capital através da venda de mercadorias e dos juros dos empréstimos, temos novas relações sociais ocupando o espaço europeu. Criam-se mercados locais, feiras onde se realizam as trocas de mercadorias vindas de cidades e/ou regiões distantes, e também de países distantes, assim como aparece a troca mercantil, efetivada através do dinheiro, que irá assumir a condição de “novo Deus”, pois fará com que tudo e todos vivam em função dele e de seu poder. Os mercado locais se expandem, transformam-se gradativamente em mercados nacionais, e posteriormente começam a existir enquanto parte de um mercado mundial em construção.

Os exemplos concretos dessa expansão do capital, numa fase que muitos denominam de “capitalismo comercial” já foram citados por vários estudiosos deste período, sendo que para nós, o que importa neste momento é demonstrar que o caráter internacional, mundial ou global das relações sociais e de produção capitalistas já estava dado na formação deste sistema. Seja através da hegemonia comercial de Gênova e Veneza e das feiras locais , como a de Champagne, até o século XIV, ou com o aparecimento de Portugal e Espanha enquanto países colonizadores nos séculos XV e XVI, é inegável a construção de um sistema internacional de comércio, portanto, do desenvolvimento do comércio exterior, ou ainda, da globalização e/ou mundialização da economia, do capital e do mercado.

Quando, em 1453, as tropas árabes-muçulmanas fecham uma das mais importantes rotas comerciais, a rota terrestre que ligava o oriente ao ocidente europeu, tendo como “fronteira” a cidade de Constantinopla, na região onde hoje está a Turquia, acontece uma mudança no comércio europeu e asiático, pois a conquista de Constantinopla pelos seguidores de Maomé obriga os europeus cristãos a pensarem em duas alternativas para superar tal problema: preparar novos ataques à região conquistada pelos muçulmanos ou encontrar outra rota para o comércio com o oriente.

A primeira alternativa, é óbvio, seria a mais cara, demandaria muitos recursos humanos e financeiros, sendo necessário tempo e dinheiro para produção de armas, preparo de combatentes, além de, como foi feito em várias guerras no Feudalismo e no Renascimento, deslocar grande parte da força de trabalho para a frente de batalha, fato que já havia gerado muitos problemas econômicos e sociais. Também é possível afirmar que uma guerra, naquela época, era uma “aventura” que não dava nenhuma garantia de vitória para este ou aquele lado, pois o nível de desenvolvimento das forças produtivas não produzia numa velocidade muito rápida as desigualdades em termos de armamento, de produção bélica. Uma guerra nessas circunstâncias, apesar de todas as orações e da fé na ajuda divina - que acompanhava tanto os cristãos quanto os muçulmanos - era sempre uma incerteza.

Sem descartar possíveis confrontos, a outra alternativa também era muito cara, exigia a mobilização de recursos humanos e financeiros, além da coragem e ousadia para desafiar os perigos de caminhos desconhecidos. Mas com a ajuda da enriquecida burguesia européia, os Estados cristãos puderam levar adiante a ambição de novas conquistas, afinal de contas “todos” só tinham a ganhar com a expansão comercial da Europa. A nobreza, representada na figura do Rei, ampliaria seu poder político e enriqueceria os cofres reais, a burguesia ampliaria seu poder econômico e financeiro, e a Igreja ampliaria seu número de fiéis, aumentando sua área de influência e seu poder frente a seus adversários internos e externos. Sendo assim, a expansão mundial do comércio e das trocas mercantis favoreciam àqueles que controlavam a política, a economia e a cultura na sociedade feudal.

Assim, desde 1415, quando os portugueses conquistaram o porto muçulmano de Ceuta, na África, o mundo começa a entrar em uma nova era, onde as rotas comerciais marítimas adquirem cada vez mais importância para a acumulação de capital da burguesia européia, que em pleno desenvolvimento, abraçava num ritmo acelerado todas as atividades que demonstravam possibilidade de gerar lucro, ou seja, de reproduzir de forma ampliada o capital comercial.

Através da navegação de cabotagem, os portugueses, conscientes ou não da dimensão da tarefa que realizavam, construíam pouco a pouco um sistema internacional de intercâmbio de idéias, de mercadorias, de costumes, etc. Em 1418 tomavam o Arquipélago da Madeira, iniciando a circunavegação do continente africano, depois ocupam em 1432 o Arquipélago de Açores, em 1434 o Cabo Bojador, e após a derrota em Constantinopla, os planos de construção de uma nova rota comercial avançam, pois a necessidade de acumulação de riquezas e poder da burguesia e da nobreza incentivava a superação de todas as dificuldades para que se desse continuidade ao desenvolvimento comercial europeu. Levando adiante a expansão das áreas de influência de Portugal, conquista-se, em 1455, o Arquipélago de Cabo Verde, em 1485, Angola, em 1487 o navegador Bartolomeu Dias cruza o Cabo da Boa Esperança, e em 1498, Vasco da Gama chega às Índias, consolidando um projeto que muitos consideravam impossível de ser realizado. Os navegadores/colonizadores portugueses foram responsáveis pela globalização de mercadorias, da cultura e de um modo de vida, o modo de vida e a cultura cristã ocidental, e também, junto com este processo, globalizaram a violência, a fome, as doenças e epidemias, as injustiças, a intolerância e o preconceito, a corrupção e as desigualdades sociais.

Quando os espanhóis entram na corrida pela conquista de novos territórios e novas mercadorias, tornam-se “parceiros” de Portugal no processo de internacionalização do mercado, dividindo o mundo entre duas potências, que insistem em se autoproclamarem donos do mundo, fato que se confirma na elaboração do Tratado de Tordesilhas, em 1494, após dois anos da chegada de Cristóvão Colombo no continente americano.

Como afirma Jacques Adda, “Em cerca de um século, entre os anos 1430 e 1540, os negociantes-navegadores-conquistadores europeus exploram as costas da África (...), apoderam-se do comércio árabe-indiano do oceano Índico, chegam à China e ao Japão, descobrem o continente americano e completam a sua conquista no centro, no sul e no norte. Embora os marinheiros sejam muitas vezes italianos, os iniciadores destas aventuras comerciais são, curiosamente, os monarcas de nações que até então se contentavam com um estatuto marginal na cena européia.”[3]

Portanto, as mercadorias comercializadas por Espanha e Portugal nos séculos XV e XVI adquirem o status de produtos globais/mundiais, e este período pode ser considerado como o apogeu destas duas potências colonizadoras. “Primeiro Portugal, com um milhão de habitantes em apenas 89.000 quilômetros quadrados no princípio do século XVI (...). Este país torna-se em poucas décadas o coração de um império comercial que se estende do Brasil a Macau, englobando as duas costas da África e portanto o caminho marítimo para a Índia. Os historiadores são unânimes em colocar na origem desta expansão vertiginosa a sede de ouro, cuja penúria coloca dificuldades aos comerciantes. Desde a Antigüidade, o mundo ocidental é deficitário nas suas trocas com o Oriente. Como o continente é pobre em metais preciosos, depende do comércio com o mundo muçulmano para financiar as suas compras de especiarias, pérolas e tecidos preciosos orientais. Os progressos da navegação e o refluxo do Islão ao longo de todo o século XV deixam entrever a possibilidade de um acesso direto às jazidas africanas (...) De fato, na época o ouro é um produto africano, cujo circuito os mercadores muçulmanos controlam. Gênova, a grande rival de Veneza, apoia-se em Lisboa, etapa cômoda na rota da Europa do Norte, mas também posição privilegiada dominando as costas noroeste da África, para tentar encontrar um caminho marítimo para o ouro do Sudão. Todavia, os primeiros êxitos portugueses no Norte da África e a descoberta das riquezas da África Ocidental (ouro, marfim, escravos) incutem novo ânimo ao reino do infante D. Henrique, que rapidamente se distancia dos genoveses. Estes viram-se para Sevilha, outra escala entre os dois Mediterrâneos, convertida pelos italianos em praça comercial e financeira (...) Nos últimos anos do século, Vasco da Gama dobra o Cabo da Boa Esperança e chega à Índia. Quebra-se assim o monopólio veneziano do comércio das especiarias, já enfraquecido pela queda de Constantinopla em 1453 (...) A descoberta desta última rota explica sem dúvida a recusa da coroa portuguesa em financiar a expedição do Genovês Cristóvão Colombo, que também se propõe atingir a Índia navegando para oeste. Este receberá por fim o apoio da rainha de Castela, desejosa por celebrar deste modo a tomada de Granada dos muçulmanos, em 1492. Em cerca de 4 anos, a Espanha completa a conquista desse novo mundo, que se dispõe a colonizar, do Chile à Califórnia, da Argentina à Flórida, contornando o Brasil português, destruindo as civilizações azteca e inca e aniquilando uma população local calculada, só para o México, em 25 milhões antes da chegada de Cortez.”[4]

Com a expansão dos domínios de Portugal e Espanha, tem início, além da construção de um mercado mundial, a globalização da cultura e do modo de vida da civilização católica-ocidental-européia. Assim como os romanos haviam chamado de “bárbaros” àqueles povos que não se adaptavam e/ou não aceitavam as regras impostas pelo “mundo civilizado” representado pelo Império Romano na Antigüidade, os colonizadores espanhóis e portugueses qualificam como “selvagens” as populações nativas do recém descoberto, ou melhor, invadido, continente americano.

Como este processo de expansão do capital comercial europeu tinha como objetivo central a acumulação de riquezas e de poder nas mãos da burguesia, da nobreza e da Igreja Católica Apostólica Romana, as vidas e os interesses das populações nativas foram deixados de lado, pois não eram europeus, nem brancos, nem católicos, portanto, eram povos considerados pelos colonizadores como atrasados, e sendo assim os europeus se deram o direito de tomar suas terras, destruir sua cultura, violentar suas mulheres, escravizar a todos, exclusivamente para garantir a expansão do comércio e o lucro da burguesia européia. Entre o poder da cruz e da espada, os indígenas da América eram massacrados pelos invasores europeus. Diante de tantas atrocidades cometidas contra os índios, alguns religiosos protestaram, e a escravização dos índios foi proibida formalmente no século XVI. É claro que tal proibição não tinha a intenção de exterminar com o trabalho escravo indígena. Como afirma Eduardo Galeano, “na realidade, não foi proibida, mas abençoada: antes de cada entrada militar, os capitães deviam ler para os índios, sem intérprete mas diante de um escrivão público, um extenso e retórico Requerimiento que os exortava a se converterem a santa fé católica: ‘Se não o fizerdes, ou nisto puserdes maliciosamente dilação, certifico-vos que com a ajuda de Deus eu entrarei poderosamente contra vós e vos farei guerra por todas as partes e maneira que puder, e vos sujeitarei ao jugo e obediência da Igreja e de Sua Majestade e tomarei vossas mulheres e filhos e vos farei escravos, e como tais vos venderei, e disporei de vós como Sua Majestade mandar, e tomarei vossos bens e vos farei todos os males que puder...’”[5]

Assim foi o início da globalização do capitalismo. Aqueles que iam sendo conquistados viravam fornecedores de matérias-primas e de produtos alimentícios para atender os interesses dos impérios coloniais metropolitanos, ou seja, fornecedores de novas mercadorias para um mercado em além-mar, um mercado que se mundializava às custas da miséria e da opressão dos povos coloniais.

Nos séculos XVI e XVIII, em meio à decadência de Portugal e Espanha no cenário internacional, novas potências coloniais aparecem, a Inglaterra, a França e a Holanda, que começam a ocupar o espaço americano, além de expandir suas garras para a África, a Ásia e a região do Pacífico Sul, onde hoje se encontra a Oceania e o conjunto de ilhas que estão ao seu redor.

Chegamos no século XVIII com um comércio exterior em contínua expansão. Basta observarmos o comércio triangular das treze colônias inglesas no norte da América. A Inglaterra exportava produtos manufaturados para Nova York, que exportava peixe, madeira e gado para as Pequenas Antilhas e rum vindo das Antilhas para a Costa do Marfim, na África. Já a Costa do Marfim exportava escravos para as Pequenas Antilhas, e estas exportavam melaço para Nova York. Além disso, a Filadélfia exportava alimentos e madeira para a Jamaica, e esta exportava melaço e açúcar para a Inglaterra. E enquanto recebia dos ingleses tecidos e ferragens, a Filadélfia exportava para Portugal peixes, cereais e madeira serrada, e este exportava para a Inglaterra sal, frutas e vinho. Estes são exemplos que comprovam que o mercado mundial já existia, mesmo que não plenamente consolidado, na época do chamado sistema colonial.


2. Industrialização e Expansão do Mercado Mundial Capitalista


Quando Adam Smith escreveu seu famoso livro A Riqueza das Nações - Investigação Sobre Sua Natureza e Suas Causas, cuja primeira edição é de 1776, afirmou que “Com efeito, em todas as épocas, em qualquer sociedade, o excedente da produção bruta ou da produção manufaturada, isto é, aquela parte para a qual não há mais demanda no país, deve ser exportado para ser trocado por algum produto que esteja em falta no país. Muito pouco importa se o capital que transporta essa produção excedente ao exterior é estrangeiro ou nacional. Se a sociedade ainda não adquiriu capital suficiente para cultivar todas as suas terras e para manufaturar plenamente toda a produção bruta, há mesmo uma grande vantagem em se exportar a produção bruta com capital estrangeiro, para que todo o capital da sociedade seja empregado para fins mais úteis. A riqueza do antigo Egito, a da China e a do Industão demonstram suficientemente que uma nação pode atingir um altíssimo grau de riqueza, mesmo se a maior parte de seu comércio seja operada por estrangeiros. O progresso de nossas colônias da América do Norte e das Índias Ocidentais teria sido muito mais lento, se na exportação do excedente de produção dessas colônias não se tivesse empregado também capital estrangeiro, além do nacional.”[6]

A partir da afirmação acima, é possível perceber que um dos autores clássicos da economia política inglesa do século XVIII já estava familiarizado com a discussão sobre o mercado mundial, a divisão internacional do trabalho e a importância da produção excedente e do comércio exterior nas relações econômicas capitalistas, bem como já participava do debate sobre a viabilidade ou não da utilização do capital estrangeiro nas transações comerciais realizadas por um determinado país. Tais temas aparecem como parte do processo de desenvolvimento do comércio e da indústria de sua época, desenvolvimento marcado pelo predomínio das relações mercantis, onde o dinheiro torna-se o equivalente geral das trocas, e onde tudo aquilo que é “tocado” pelo capital e pelas relações capitalistas vira mercadoria, que pode ser comprada ou vendida nos mercados locais, nacionais, regionais, ou mesmo no mercado mundial.

Smith expõe, nessa breve citação, um dos eixos centrais da produção capitalista, que é a produção do excedente, ima produção que tem como objetivo não o simples atendimento das necessidades básicas de uma certa comunidade/sociedade, mas sim o atendimento das necessidades do mercado, visando a acumulação de capital, e transformando o comércio na atividade econômica mais importante. A produção capitalista do século XVIII já demonstrava a continuação de uma tendência que já vinha se desenvolvendo com rapidez desde o século XV, a subordinação do valor de uso (que diz respeito à necessidade e à utilidade) ao valor de troca[7] , “pois o capital define ‘útil’ e ‘utilidade’ em termos de vendabilidade”.[8]

Com as revoluções burguesas nos séculos XVII e XVIII, e com o desenvolvimento das forças produtivas capitalistas neste mesmo período, representadas pelo avanço da maquinaria e da grande indústria, entra-se numa nova era do capitalismo, onde começa a se explicitar a hegemonia do capital industrial, e mais precisamente do capital industrial inglês.

Com a Revolução Industrial consolida-se o capitalismo, e a sociedade européia - e depois o mundo - desenvolve cada vez mais as características próprias da nova sociedade produtora de mercadorias, onde se destacam, enquanto particularidade do mundo capitalista, as seguintes transformações: separação radical entre os trabalhadores e os meios de produção; predomínio da propriedade privada dos meios de produção; predomínio do trabalho assalariado; a indústria torna-se o setor mais importante da produção; o objetivo central da produção é o lucro, a acumulação ampliada do capital; luta de classes entre a burguesia e o proletariado; constante desenvolvimento dos meios de transporte e de comunicação; constante desenvolvimento das forças produtivas, da ciência e da tecnologia; produção em grande escala; a lógica da concorrência e da busca incessante por maior produtividade e lucratividade, o que estimula um individualismo exacerbado; a força de trabalho torna-se uma mercadoria; o comércio adquire cada vez mais o caráter de comércio exterior; o mercado torna-se cada vez mais um espaço mundial de trocas e desenvolvimento desigual e combinado da indústria e do próprio modo de produção, originando uma divisão internacional do trabalho onde as potências mais industrializadas irão impor as regras para a convivência regional e mundial.

Sendo assim, é possível afirmar que “a grande indústria criou o mercado mundial, para o qual a descoberta da América preparou o terreno (...) A necessidade de mercados cada vez mais extensos para seus produtos impele a burguesia para todo o globo terrestre. Ela deve estabelecer-se em toda parte, criar vínculos em toda parte. Através da exploração do mercado mundial, a burguesia deu um caráter cosmopolita à produção e ao consumo de todos os países. Para pesar dos grandes reacionários, retirou debaixo dos pés da indústria o terreno nacional. As antigas indústrias nacionais foram destruídas e continuam a ser destruídas a cada dia. São suplantadas por novas indústrias, cuja introdução se torna uma questão de vida ou morte para todas as nações civilizadas - indústrias que não mais empregam matérias-primas locais, mas matérias-primas provenientes das mais remotas regiões, e cujos produtos são consumidos não somente no próprio país, mas em todas as partes do mundo. Em lugar das velhas necessidades, satisfeitas pela produção nacional, surgem necessidades novas, que para serem satisfeitas exigem os produtos das terras e dos climas mais distantes. Em lugar da antiga auto-suficiência e do antigo isolamento local e nacional, desenvolve-se em todas as direções um intercâmbio universal, uma universal interdependência das nações. Os produtos intelectuais de cada nação tornam-se patrimônio comum. A unilateralidade e a estreiteza nacionais tornam-se cada vez mais impossíveis, e das numerosas literaturas nacionais e locais forma-se uma literatura mundial”.[9]

A citação acima não expressa o movimento de internacionalização/mundialização/globalização do capitalismo? E isto foi escrito quando? Nos anos 90 deste século? Não, pois Marx e Engels, autores das frases citadas, expuseram tais idéias num livro escrito entre dezembro de 1847 e fevereiro de 1848. Cento e cinqüenta anos se passaram, e tais afirmações permanecem atuais, o que nos faz lembrar que a tal da “globalização”, vista pela imprensa mundial, pelos governos, empresários, líderes sindicais, membros de partidos, intelectuais e demais instituições, não é, definitivamente, uma novidade, pois o capitalismo já nasce buscando sua internacionalização/mundialização/globalização.

O pior de tudo isto é que inúmeros autores e estudiosos do capitalismo já afirmaram isto, mas vivemos num fim de século onde predomina uma ditadura do pensamento único, que insiste em destruir o passado, que tenta impedir a compreensão do presente e inviabilizar a construção de um futuro diferente do que é o mundo na atualidade.

Portanto, como já afirmou Eric Hobsbawn, entre 1840 e 1870, “o capitalismo industrial tornou-se uma genuína economia mundial e o globo estava transformado, dali em diante, de uma expressão geográfica em uma constante realidade operacional. História, dali em diante, passava a ser história mundial”.[10]


3. Imperialismo e Globalização do Capitalismo


A partir do final do século XIX, intensifica-se a expansão do capital e do capitalismo, tendo como objetivo a apropriação, por parte das nações industrializadas, de cada vez mais matérias-primas e alimentos para atender suas necessidades. Além disso, as potências capitalistas da época precisavam de novos mercados consumidores para seus produtos industrializados. Tanto a luta por matérias-primas e/ou alimentos, como a necessidade de novos mercados, fizeram com que se desenvolve-se uma nova fase colonialista, onde a África, a Ásia e a América Latina serão ocupadas/invadias pelos exércitos, pelo capital ou pelos produtos originários da Europa, dos Estados Unidos e/ou do Japão, pois na Europa, Inglaterra, França, Alemanha, Itália, Bélgica e Holanda apareciam como os “representantes” do continente, enquanto que Japão e Estados Unidos, mesmo que isoladamente em suas regiões, também tentavam impor sua hegemonia, e para isso, assim como todos os países capitalistas industrializados - ou em processo de industrialização - nesse período, se utilizavam do militarismo, do expansionismo e da guerra de conquista como formas de fazer valer seus interesses numa determinada região.

Neste final de século XIX e no início do século XX, vários autores, e muitos deles influenciados pelas idéias de Karl Marx e Friendrich Engels, buscavam fazer uma análise crítica da expansão capitalista, qualificando como “imperialismo” a fase superior do capitalismo, onde algumas mudanças diferenciavam o sistema das épocas anteriores. Preocupados em compreender as desigualdades do desenvolvimento mundial do capitalismo, bem como o movimento do capital, o papel do mercado e do Estado e as questões nacionais dentro de um mundo que cada vez mais reproduzia a interdependência entre as nações, os marxistas elaboram o que ficou conhecido como “teoria do imperialismo”.

Alguns autores que contribuíram para o debate sobre o capitalismo do final do século XIX foram: Rudolf Hilferding, Rosa Luxemburg, Nicolai Bukhárin e Vladimir Lenin.
Selecionamos tais autores devido à temática desenvolvida pelos mesmos em algumas de suas obras mais importantes. No caso de Hilferding, foi um dos pioneiros na explicação do papel dos bancos, dos trusts, dos cartéis, das sociedades anônimas, dos monopólios e do capital financeiro dentro do processo de expansão capitalista. Em sua obra O Capital Financeiro[11], o mesmo dá continuidade aos estudos de Marx sobre o chamado “capital fictício”. Karl Marx, no capítulo XXIV do livro III de O Capital[12], faz uma análise sobre o capital portador de juros, mostrando que uma tendência da economia capitalista é a participação cada vez maior deste tipo de capital nas relações econômicas e financeiras. Hilferding, partindo das análises de Marx sobre os juros, o dinheiro e o crédito, realiza um amplo estudo sobre a ação do capital bancário e suas relações com os grandes conglomerados industriais de caráter multinacional/transnacional , que ampliavam de forma crescente sua influência e seu poder na economia mundial. Dessa maneira, o autor de O Capital Financeiro descreve como o capital industrial e o capital bancário contribuem para o surgimento do capital financeiro, gerando com isso uma nova fase do capitalismo, onde a chamada livre-concorrência começa a ceder lugar para a concorrência entre os monopólios e oligopólios, tudo isso como parte da política econômica do capital financeiro, que é qualificada pelo autor citado como imperialismo, pois tal política tem como necessidade o controle de novos mercados, a expansão territorial, a reprodução ampliada do capital em escala internacional e a constituição de colônias que garantam a sustentação e o desenvolvimento dos países capitalistas mais industrializados.

O estudo dos textos de alguns teóricos do imperialismo se faz necessário para a compreensão da chamada “globalização”, pois nos parece correto afirmar que tanto Hilferding como outros autores que citaremos já percebiam as mudanças promovidas no mundo pela expansão mundial do capital e do capitalismo. Tanto é verdade que, em textos de Rosa Luxemburg, aparece qual o papel do militarismo no processo de expansão capitalista de um determinado Estado nacional. Para ela, o mesmo “desempenha uma função bem determinada. Ele acompanha os passos da acumulação em todas as suas fases históricas. No período da chamada ‘acumulação primitiva’, ou seja, nos primórdios do capital europeu, o militarismo desempenhou papel decisivo na conquista do ‘Novo Mundo’ e dos países fornecedores de especiarias das Índias; desempenhou-o também mais tarde, na conquista das colônias modernas, na destruição das comunidades sociais das sociedades primitivas e na apropriação de seus meios de produção, na imposição violenta do comércio aos países cuja estrutura social constituía um obstáculo à economia mercantil, na proletarização forçada dos nativos e na instituição do trabalho assalariado nas colônias, na formação e extensão de áreas de influência do capital europeu (europeu em regiões não-européias), na imposição de concessões de ferrovias a países atrasados, na execução das dívidas resultantes de empréstimos internacionais do capital europeu e finalmente como instrumento da concorrência entre os países capitalistas visando a conquista de culturas não-capitalistas”.[13]
Será possível negar que o militarismo tem realmente um papel determinado no processo de expansão mundial do capitalismo? Se observarmos o século XX, com certeza diremos não, pois o militarismo e a guerra se fizeram presentes durante todo o século. São vários os exemplos, seja em Cuba, Nicarágua, Panamá, Granada, Haiti, são os marines americanos na América Latina, com suas invasões armadas, é o governo dos E.U.A financiando golpes militares, são os ingleses e franceses disputando o Oriente Médio, são os europeus partilhando a África, são os franceses na Indochina e na Argélia, os Ingleses na China e na Índia, os norte-americanos na Coréia e no Vietnã, são as guerras nos balcãs, são as duas Guerras Mundiais, a criação do Estado de Israel e as guerras árabe-israelenses, foi a guerra no golfo pérsico, são as guerras e conflitos na Europa, são todos exemplos concretos de integração de regiões e países à lógica do mercado mundial capitalista e das grandes potências mundiais.

Interessante notar que em seu livro A Economia Mundial e o Imperialismo, N. Bukharin também analisa o papel das guerras no processo que ele qualifica de “internacionalização do capital”. Este autor afirma que “a guerra é um meio de reprodução de certas relações de produção”[14], e “a guerra de conquista é um meio de reprodução ampliada dessas relações”[15]. Além disso, este autor também já chamava atenção para a constante internacionalização do capitalismo, pois para ele, “a divisão internacional do trabalho faz dos modos nacionais de produção privada parte integrante do vasto processo universal de trabalho, que abarca a quase totalidade da humanidade”.[16]

Outro autor que ficou bastante conhecido por escrever sobre o imperialismo foi Vladimir I. Lenin, uma das figuras importantes na Revolução Russa de 1917, e também uma das maiores referências no campo do pensamento marxista do século XX. Em seu livro Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo, Lenin reproduz a concepção já esboçada por Hilferding sobre a concentração do capital, o imperialismo e o capital bancário. Sem desmerecer a contribuição de Lenin, e os inúmeros dados estatísticos e informações sobre os cartéis e os trusts, sobre os bancos alemães e as corporações industriais que construíam verdadeiros monopólios, percebemos que no texto citado está presente a herança de Marx e Hilferding. Apesar da obra de Hilferding ter sido mais profunda na temática das causas do imperialismo, o livro de Lenin trata de forma mais didática as conseqüências trazidas pela fusão do capital industrial com o capital bancário, o que gerou, de acordo com esses dois autores, o capital financeiro, forma típica do capital na fase superior e/ou imperialista do capitalismo, fase que, de acordo com Lenin, tem as seguintes características:

“1. Concentração da produção e do capital, atingindo um grau tão elevado que origina os monopólios, cujo papel é decisivo na vida econômica;
2. fusão do capital bancário e do capital industrial, e criação, com base nesse ‘capital financeiro’, de uma oligarquia financeira;
3. diferentemente da exportação de mercadorias, a exportação de capitais assume uma importância muito particular;
4. formação de uniões internacionais monopolistas de capitalistas que partilham o mundo entre si;
5. partilha territorial do globo entre as maiores potências capitalistas”[17]

Portanto, de acordo com Lenin, “o imperialismo é o capitalismo chegando a uma fase de desenvolvimento onde se afirma a dominação dos monopólios e do capital financeiro, onde a exportação dos capitais adquiriu uma importância de primeiro plano, onde começou a partilha do mundo entre os trusts internacionais e onde se pôs termo à partilha de todo o território do globo entre as maiores potências capitalistas”.[18]

Com isso, acreditamos que recuperar estes teóricos do imperialismo foi uma forma de buscarmos mais subsídios para afirmar que aquilo que muitos hoje chama de “globalização”, enquanto um fenômeno típico dos anos 90, enquanto parte de uma suposta “nova ordem mundial”, é nada mais que o processo de expansão mundial do capitalismo, que carrega consigo uma série de contradições, de desigualdades, que se manifesta de forma diferente dependendo do lugar e da época.

Não pretendemos desconsiderar as inúmeras transformações que ocorreram no mundo desde o final do século XIX, mas também não podemos negar a capacidade destes e de outros teóricos do imperialismo de captar a tendência do desenvolvimento capitalista, afinal de contas, Hilferding publicou seu livro em 1910, Rosa Luxemburg em 1912, Bukharin em 1915, e Lenin em 1916. E na atualidade ainda podemos perceber que as características do imperialismo estão cada vez mais presentes na vida econômica e financeira mundial, basta observar as constantes e quase diárias crises financeiras internacionais, ou então as várias fusões entre empresas e/ou bancos, constituindo os já apontados monopólios e oligopólios.

Sendo assim, percebemos que a palavra “globalização” nada mais é que um novo nome dado a um velho fenômeno, que é a expansão mundial do capitalismo.


Conclusão


O que nos chamou a atenção durante as leituras que desenvolvemos é a constatação de que está em curso uma ditadura do pensamento único, onde não há, ou tenta-se reduzir ao máximo, o espaço para o pensamento crítico, para idéias que não se adaptam ou não se enquadram dentro das regras estabelecidas pelas classes dominantes. Juntamente com isso temos os plágios dos chamados neoliberais, que perdem o respaldo a cada dia que passa, a cada queda nas bolsas de valores, mas insistem em criar um mundo de falsidade e ilusão, onde o “Deus mercado” reina absoluto com o auxílio de formas despóticas de intervencionismo estatal, que privatiza, que impõe a desregulamentação das relações trabalhistas, que elimina numa questão de minutos conquistas e direitos sociais que levaram décadas ou séculos para serem aprovados.

A fraseologia dos defensores do capital prega um mundo de progresso, de prosperidade econômica e social para aqueles que se adaptarem ao chamado processo de “globalização”, para os que se integram ao chamado mercado mundial. Mas o que nos chama atenção é a fome, a miséria, a crescente exclusão econômica, social, política e cultural, é o analfabetismo, as epidemias, as guerras entre as nações, entre as religiões, as lutas por independência, as guerras de conquista, os massacres civis nos conflitos militares, os estupros e campos de extermínio ocorridos na guerra na ex-Ioguslávia, os conflitos na Irlanda do Norte, as manifestações contra e a favor do Movimento Separatista Basco (Euskadi Ta Askatasuna – ETA e outros) na Espanha, o ressurgimento de grupos neo-fascistas na Europa Ocidental e Oriental, as milícias civis e os racistas e neo-nazistas nos E.U.A, o movimento pela separação do Quebéc, no Canadá, as inúmeras guerras civis na África e na Ásia, os conflitos entre Índia e Paquistão, a continuidade da guerra de conquista dos EUA no Iraque e Afeganistão, a questão palestina sem solução duradoura, o desemprego crescente, o crescente poder do narcotráfico latino-americano e mundial, as guerrilhas e lutas populares no México, no Peru e na Colômbia, as greves e mobilizações na Bolívia (que resultaram na eleição do líder sindical-indígena Evo Morales), os constantes ataques do governo dos EUA contra Cuba e Venezuela (como o golpe civil-militar patrocinado pelo governo Bush contra o presidente venezuelano Hugo Chávez, em abril de 2002), a decadência econômica e social da população do Leste da Europa e das ex-Repúblicas Soviéticas, a volta do problema das nacionalidades na Rússia e países vizinhos, as migrações internas, as emigrações, de argelinos para a França, de turcos para a Alemanha, de albaneses para a Itália, os massacres do governo da Indonésia contra seu povo e contra o povo de Timor-Leste, a luta dos trabalhadores rurais sem terra no Brasil, principalmente a luta do MST, o constante ataque aos direitos humanos em todo o mundo, as prisões, as torturas e assassinatos daqueles que lutam contra a fome, o desemprego e as injustiças, a corrupção crescente nos orgãos governamentais, a dívida externa impagável dos países da periferia do capitalismo, o aumento do poder das corporações industriais-financeiras multinacionais, isto sim é o mundo real, e é a partir da compreensão desses problemas que acreditamos ser possível a transformação das atuais condições de vida da humanidade.

Nesse emaranhado de problemas que cercam o mundo atual, acreditamos na capacidade da humanidade de encontrar um rumo a ser seguido, pois “na ausência de soluções fictícias, talvez tenhamos então a oportunidade de perceber, enfim, os verdadeiros problemas, e não aqueles para os quais querem nos desviar. É a partir de uma ruptura com a esperteza das versões apressadas, das percepções factícias, dos simulacros impostos, que será possível abordar aquilo em que estamos realmente implicados. Só assim então é que se poderá esclarecê-lo, e - mas sem nenhuma certeza - até resolvê-lo. Pelo menos se descobrirá do que se trata e, sobretudo, quais as armadilhas a evitar: problemas que servem de cortina, encenações truncadas. É a partir daí - e só daí - que será possível lutar contra um destino. Por um destino. Para adquirir e recobrar a capacidade de conduzir esse destino (...)”.[19]

[1] Doutorando em Ciências Sociais PUC/SP, membro do Núcleo de Estudos de Ideologias e Lutas Sociais (NEILS_PUC/SP) ,coordenador do Núcleo de Estudos Latino-Americanos (NELAM-Centro Universitário Fundação Santo André); professor do Centro Universitário Fundação Santo André e da Universidade Metodista de São Paulo; assessor, nas áreas de Relações Internacionais e Educação/Formação, de diversos movimentos sociais.

[2] MARX, Karl e ENGELS, Friendrich, Manifesto Comunista, in Berman, Marshall, “Tudo Que é Sólido Desmancha no Ar - A Aventura da Modernidade”, São Paulo, Cia das Letras, 1995, p.88.
[3] ADDA, Jacques, A Mundialização da Economia - 1.Génese, Lisboa, Terramar, 1996, p.30.
[4] Idem, p. 31 e 32.
[5] GALEANO, Eduardo, As Veias Abertas da América Latina, Rio de Janeiro, Paz & Terra, 1978, p. 25.
[6] SMITH, Adam, A Riqueza das Nações - Investigação Sobre Sua Natureza e Suas Causas, Volume I, Coleção “Os Economistas”, São Paulo, Nova Cultural, 1996, p. 376.
[7] Uma discussão esclarecedora sobre as formas de manifestação do valor pode ser encontrada em MARX, Karl, O Capital, Livro I, Volume I, Coleção “Os Economistas”, São Paulo, Nova Cultural, 1982, p. 45/78.
[8] MÉSZÁROS, István, Produção Destrutiva e Estado Capitalista, São Paulo, Ensaio, 1989, p. 23.
[9] MARX, Karl e ENGELS, Friendrich, Manifesto do Partido Comunista, Petrópolis, Vozes, 1988, p. 68/70.
[10] HOBSBAWN, Eric, A Era do Capital - 1848/1875, Rio de Janeiro, Paz & Terra, 1979, p. 66.
[11] HILFERDING, Rudolf, O Capital Financeiro, Coleção “Os Economistas”, São Paulo, Nova Cultural, 1985.
[12] MARX, Karl, O Capital, Volume IV, Livro III, Tomo I, Coleção “Os Economistas”, São Paulo, Nova Cultural, 1988.
[13] LUXEMBURG, Rosa, A Acumulação de Capital, Coleção “Os Economistas”, São Paulo, Nova Cultural, 1985, p. 311.
[14] BUKHARIN, Nicolai I., A Economia Mundial e o Imperialismo, Coleção “Os Economistas”, São Paulo, Nova Cultural, 1988, p. 105.
[15] Idem, p. 105.
[16] Idem, p. 97.
[17] LENIN, Vladimir I., Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo, São Paulo, Global, 1987, p. 88.
[18] Idem, p. 88.
[19] FORRESTER, Viviane, O Horror Econômico, São Paulo, UNESP, 1997, p. 55.

Sobre a atual crise do capitalismo

Sobre a atual crise do capitalismo:
A crise mundial do capitalismo e as perspectivas dos trabalhadores

por Edmilson Costa [*]

A crise que envolve o conjunto do sistema capitalista e, especialmente os países centrais, é devastadora, profunda e de longa duração. Estamos apenas no início de um processo que envolverá a derrocada do sistema financeiro internacional tal como conhecemos hoje, queda brusca no comércio mundial, uma grande recessão, desemprego generalizado, e graves tensões sociais no centro e na periferia. Por suas dimensões econômicas e financeiras, esta crise é muito maior que a de 1929, com o agravante de que atinge de maneira sincronizada o coração do sistema capitalista e torna praticamente sem efeito as tentativas de coordenação ensaiadas pelos líderes das principais economias mundiais. A crise reflete ainda um conjunto de contradições que o capitalismo vem acumulando desde a segunda metade da década de 60 (superacumulação de capitais, financeirização da riqueza e frenesi especulativo) e que agora se expressam com rudeza explícita em toda a vida social contemporânea das nações que fazem parte do processo de acumulação mundial.

Ao contrário do que os meios de comunicação procuram difundir, esta não é uma crise do setor imobiliário, do crédito, da falta de liquidez, ou de regulação, ou ainda um fenômeno oriundo da ganância dos especuladores inescrupulosos que colocaram em risco o capitalismo. Esta é uma crise do conjunto do capitalismo: o sistema todo está doente e seus fundamentos estão sendo questionados pela crise. Além disso, essa crise não é administrável com os instrumentos clássicos de política monetária ou intervenções tópicas para recuperar a credibilidade do sistema. Por isso, as tentativas de coordenação dos governos e Bancos Centrais não conseguem resolver o problema. A crise vai seguir objetivamente seu curso durante alguns anos, independentemente da vontade dos dirigentes dos países centrais, com repercussões em todas as esferas da vida social - na economia, na geopolítica e entre as classes sociais. Ressalte-se ainda que a forma particular como a crise se apresenta atualmente (financeira, imobiliária, etc.) representa apenas a ponta do iceberg de um problema mais de fundo, que é a superacumulação de capitais e a impossibilidade de valorizá-los na esfera da produção.

Mas a crise também tem suas particularidades, como todas as crises do sistema capitalista, uma vez que cada crise traz consigo um conteúdo novo (Campos, 2001: 21) [1] . Esta crise fecha um longo ciclo de 30 anos da hegemonia do pensamento único e encerra uma forma particular de acumulação, baseada na hegemonia das altas finanças, mecanismo através do qual o grande capital capturava a mais-valia mundial, mediante uma infinidade de mecanismos de punção, que envolvia desde o aprisionamento do orçamento do Estado até recursos das empresas produtivas e dos diversos fundos mútuos ou dos trabalhadores. Nada será como antes após o 15 de setembro. Podemos constatar com ferina ironia o desespero dos fundamentalistas neoliberais sendo obrigamos pelas leis objetivas da vida social a fazer o contrário de tudo que pregavam anteriormente e a desmoralizarem-se perante o mundo: abandonaram o discurso do livre mercado, chamaram de volta o Estado para socorrer a economia e praticamente "estatizaram" todo o sistema financeiro dos países centrais para salvar seus especuladores e agiotas.

Como conseqüência, em poucas semanas, a crise também quebrou todos os mitos neoliberais: o mercado como regulador da vida social e espécie de semi-deus com sua mão invisível a harmonizar interesses de produtores e assalariados; a retirada do Estado da economia, as privatizações e a desregulamentação , como forma de desobstruir os canais do livre mercado e transferir as empresas públicas para o capital privado; a iniciativa privada, como operadora do sistema econômico, racional e eficiente, ao contrário das empresas estatais, ineficientes, esbanjadoras de recursos públicos; a credibilidade das agências de risco, cujas instituições funcionavam como palmatória do mundo, a dar notas a países e empresas de acordo com os critérios e interesses do grande capital; o pensamento único e o fim da história: a ideologia neoliberal era considerada o estágio mais avançado do pensamento e o capitalismo neoliberal o sistema modelar de organização da economia, cujo funcionamento desregulado tornaria impossível qualquer tentativa de mudança no modo de produção capitalista.

Tudo isso desmanchou-se no ar em poucos dias como uma cortina de fumaça. Em menos de um mês desapareceram do cenário econômico os cinco maiores bancos de investimentos dos Estados Unidos (o vértice da pirâmide do capital financeiro), as duas maiores empresas hipotecárias do planeta, bem como a maior empresa seguradora do mundo. Se alguém tivesse previsto uma conjuntura desse porte um mês antes, com certeza seria motivo de piada. Portanto, esta crise significa não só o dobre de finados do neoliberalismo, mas também a derrota moral do capitalismo e do bloco de forças mais reacionário e mais parasitário do grande capital, que amealhou o poder nos países capitalistas centrais no final dos anos 70 e subordinou todos os outros setores à lógica da especulação financeira. Além disso, representa ainda grande possibilidade de um ascenso de massas de caráter mundial que irá dar combate a um sistema ferido.

A crise revelou também de forma cristalina o caráter de classe do Estado e do governo: quando a economia estava bem, os lucros eram apropriados pela burguesia; agora que a economia vai mal, o Estado socializa os prejuízos com os trabalhadores. Realmente, os governos dos países centrais já injetaram até agora mais de US$ 7,0 x 10 12 na economia para salvar os especuladores. No entanto, por incrível que pareça, essas mesmas autoridades pouco fizeram para resolver os problemas de milhões de pessoas que perderam suas casas e estão vivendo na rua, em barracas de lonas nos parques, em trailers, além dos outros milhões de insolventes das dívidas com cartões de crédito e outras dívidas pessoais. Esse escândalo de classe, em algum momento da conjuntura, vai cobrar seu preço, pois cada vez mais ficará mais claro para a população a opção dos governantes pelos ricos.

É necessário ressaltar ainda que, nos períodos de crise, o grande capital busca se entrincheirar no Estado e nos organismos institucionais, como os Bancos Centrais e organismos de coordenação internacionais, a fim de tentar salvar suas posições e recuperar o que perderam com a crise. Procuram assim jogar todo o ônus da crise na conta dos trabalhadores. Primeiro, tentam vender a ilusão de que na crise cada um deve dar sua contribuição para que todos possam se salvar, mesmo sabendo-se que quem quer se salvar é a burguesia e seu sistema de exploração. Quando este método não funciona, o capital marcha unido contra os trabalhadores buscando ampliar o raio de exploração e retirar-lhes direitos e garantias. Portanto, esta conjuntura deverá acirrar as lutas sociais e as disputas entre as classes fundamentais da sociedade: trata-se de um momento especial da luta de classe em caráter mundial, em que a burguesia vai utilizar todos os meios possíveis para sair vitoriosa da crise e o proletariado também deve estruturar seu projeto de sociedade para superar o capitalismo.

Antecedentes da crise

Como já enfatizara Marx, os capitais se movimentam permanentemente na busca de valorização e da maximização do lucro . "O capital tem como único impulso vital, o impulso de valorizar-se, de criar mais-valia, de absorver com sua parte constante, os meios de produção, a maior massa possível de mais-trabalho (Marx, 1983:188-189) (...) O motivo que impulsiona e o objetivo que determina o processo de produção capitalista é a maior autovalorização possível do capital (Marx, 1983: 263) [2] (...) Antes de mais nada, o objetivo da produção capitalista não é apossar-se de outros bens, e sim apropriar-se de valor, de dinheiro, de riqueza abstrata" (Marx, 1983: 939) [3] . Portanto, quando esse objetivo está sendo contrariado, ou seja, quando as taxas de lucro estão caindo, o capital procura novas formas para restabelecer seu patamar de rentabilidade. Foi exatamente o que aconteceu a partir da segunda metade da década de 60, quando as taxas de lucro começaram a decrescer nos países centrais, especialmente nos Estados Unidos, onde concentraremos nossa análise. Diante dessa conjuntura, o grande capital realizou um movimento estratégico para recuperar as taxas de lucro, baseado em três eixos fundamentais:

a) Parte expressiva dos setores industriais do EUA foi deslocada para a Ásia, México, América Latina e América Central em busca de mão-de-obra barata e um conjunto de outras vantagens econômicas e institucionais que possibilitassem ao capital operar de maneira mais vantajosa, de forma a elevar as taxas de lucro. O grande capital imaginava compensar, do ponto de vista econômico, uma possível fragilidade manufatureira nos Estados Unidos com as remessas de lucros e os preços de transferência de suas transnacionais para o interior dos EUA, além do controle do comércio mundial e, do ponto de vista político, através da maior influência norte-americana nas várias regiões do mundo.

b) Os setores mais parasitários do capital que assumiram o poder nos Estados Unidos e Inglaterra no final da década de 70 buscaram reconfigurar o mundo a partir da criação de uma nova ordem econômica internacional, tendo como pilares a implantação do monetarismo como forma de organizar a economia e o neoliberalismo como o gestor político do sistema sócio-econômico. Transformaram em política de Estado a ideologia neoliberal: o mercado como regulador da economia, a desregulamentação, a liberalização bancária, a livre mobilidade dos capitais pelo mundo, a retirada do Estado da economia e uma agressiva política de transferência de bens do Estado para o setor privado, através das privatizações.

c) Além dessas mudanças de fundo, o grande capital norte-americano realizou na década de 80 e 90 uma espécie de fuga para frente, buscando estruturar uma economia de serviços, baseada na criação da riqueza mediante o extraordinário desenvolvimento do capital fictício. O objetivo era desenvolver um sistema financeiro sofisticado e hierarquizado a partir das instituições norte-americanas, capaz de capturar parte da mais valia mundial, e estruturar as relações sócio-econômicas mundiais a partir dos interesses dos Estados Unidos. Inovações financeiras e finanças estruturadas, endividamento generalizado das famílias e expansão da dívida pública, além de aumento dos gastos na área do complexo industrial militar, de forma a permitir o desenvolvimento da política guerreira norte-americana, especialmente após a queda da União Soviética, foram a tônica da estratégia nos Estados Unidos.

Essa reestruturação estratégica do grande capital norte-americano, ao contrário do que seus idealizadores imaginavam, fragilizou de maneira acentuada a economia dos Estados Unidos, uma vez que as três variáveis implementadas para resgatar as taxas de lucro e controlar o sistema financeiro mundial resultaram num conjunto de problemas estruturais que viriam emergir dramaticamente com a crise atual, tais como um déficit fiscal, um déficit na balança comercial, elevação exponencial da dívida externa, da dívida das famílias e corporações, além da constituição de um sistema financeiro tão especulativo, que construiu as próprias bases de sua desagregação. Em outras palavras, a reestruturação neoliberal cobrou um enorme preço aos Estados Unidos, tanto do ponto de vista econômico, quanto social e político. Senão vejamos:

A deslocalização de grande parte das indústrias para outras regiões gerou um déficit permanente na balança comercial, uma vez que os produtos elaborados no exterior entravam nos Estados Unidos como mercadorias importadas, ressaltando-se que mais de 30% dos alimentos consumidos nos EUA, além de um volume expressivo do petróleo, são importados. O deslocamento das indústrias ocorreu no ambiente da internacionalização da produção e da introdução de novas tecnologias nas plantas industriais, que se expressaram na globalização da produção mundial, processo que elevou composição orgânica do capital (a relação entre o capital social geral e a extração da mais-valia). Essas modificações, por sua vez, geraram dialeticamente novas contradições: apesar da do barateamento da mão-de-obra, o incremento da ciência na produção estreitou, numa ponta, a base de extração da mais-valia, ao reduzir o número de trabalhadores por hora-máquina; ao mesmo tempo, esse novo patamar de acumulação reduziu também o mercado para a realização das mercadorias.

Os dois fatores levariam inevitavelmente no médio prazo à crise de superacumulação. Como já assinalara Marx, o modo de produção capitalista cria barreiras para si mesmo, uma vez que a acumulação promove a queda na taxa de lucro. "Queda da taxa de lucro e acumulação acelerada são, nesse medida, apenas expressões diferentes do mesmo processo, já que ambas expressam o desenvolvimento da força produtiva. A acumulação, por sua vez, acelera a queda da taxa de lucro, à medida que com ela está dada a concentração dos trabalhos em larga escala e, com isso, uma composição mais elevada do capital (...) sua queda retarda a formação de novos capitais autônomos e assim aparece como ameaça para o desenvolvimento da produção capitalista; ela promove superprodução, especulação, crises, capital supérfluo, ao lado de população supérflua (...) Esse modo de produção cria uma barreira para si mesmo (...) e essa barreira popular testemunha a limitação e o caráter tão somente histórico e transitório do modo de produção capitalista" (Marx, 1984, 183-184) [4] .

É importante ressaltar outros fatores negativos que contribuíram para a crise: a "desindustrialização" manufatureira nos EUA, as derrotas impostas ao movimento sindical, a precarização do trabalho e a contratação da mão-de-obra imigrante tiveram um papel dramático sobre a renda dos trabalhadores norte-americanos. Entre 1973 e 2005, os 80% dos trabalhadores que não exerciam funções de supervisão viram sua renda semanal cair de US$ 581,67 para US$ 543,65. Em outras palavras o poder de compra desse contingente de trabalhadores era menor em 2005 do que em 1973. Enquanto os salários eram reduzidos, a produtividade aumentou de maneira extraordinária no mesmo período, atingindo um aumento de 75% no mesmo período (Wolff, 2008) [5] . Outros dados, para período mais recente, indicam o seguinte: "Entre 2000 e 2006 a economia norte-americana cresceu 18%, mas a renda mediana dos domicílios dos trabalhadores caiu 1,1% em termos reais (...) Em contrapartida, os 10% mais ricos da população viram sua renda crescer 32%. No caso dos 1% mais ricos o crescimento foi de 203%, e de 425% para o segmento representante dos 0,1% superior na pirâmide de renda" (Valor Econômico) [6] .

Como as famílias norte-americanas têm no padrão de consumo um dos elementos de sua afirmação social, a queda na renda levou as famílias ao endividamento generalizado, muito acima de suas possibilidades econômicas, processo facilitado nos últimos anos pelas baixas taxas de juro. A dívida interna geral (hipotecas, cartões de crédito, compras de produtos em geral, leasing soma US$ 38,6 x 10 12 , três vezes o PIB americano (Moore, 2008) [7] .

As políticas neoliberais de reduzir os impostos para os ricos, aliados aos gastos com as aventuras guerreiras no exterior e o desenvolvimento do complexo industrial militar criaram um enorme déficit fiscal, que tinha sido zerado na administração Clinton. Esta situação levou o governo a financiá-lo no exterior, mediante a emissão de títulos, ampliando o endividamento externo. Os Estados Unidos passaram de nação credora até os anos 60 para a maior devedora do planeta. A dívida externa norte-americana está calculada em cerca de US$ 9,5 x 10 12 .

A desregulamentação transformou o sistema financeiro dos EUA e, por gravidade, as finanças internacionais, num teatro de operações especulativas sem precedentes na história do capitalismo, dado o tamanho do descolamento entre a esfera produtiva e a órbita da circulação. Para se ter uma idéia, enquanto o PIB mundial está por volta de US$ 55 x 10 12 , o valor escritural (notional) das operações financeiras especulativas foi de US$ 683,7 x 10 12 (BIS, 2008) [8] no final do primeiro semestre de 2008, cerca de 12 vezes o PIB mundial. Pela grandeza desse número já se podia prever a intensidade da crise, pois não existe mais-valia capaz de remunerar essa quantidade de recursos especulativos.

A dinâmica da especulação

Ao contrário do que imagina o senso comum, a especulação é um processo recorrente e parte constitutiva do sistema capitalista e o capital fictício, de tempos em tempos, sempre encontra um setor da economia para desenvolver a especulação financeira. John Kenneth Galbraith, em um livro muito ilustrativo sobre a história das crises financeira, narra com detalhes a euforia das bolhas especulativas, a dinâmica das crises e os traços comuns entre elas. Galbraith assinala que os processos especulativos são muito semelhantes: começam num setor qualquer da economia com uma inovação financeira, desenvolvem-se em função da euforia dos ganhos fáceis e entram em colapso quando se desinfla a bolha especulativa.

"De maneira uniforme, em todos os eventos especulativos, está a idéia de que há algo novo no mundo ... das tulipas na Holanda, ouro na Luisiana, terrenos na Flórida ... Algum acontecimento novo e desejável toma conta da mente financeira. O preço do objeto da especulação dispara. Títulos, terrenos, objetos de arte, ou outros bens adquiridos hoje passam a valer mais amanhã. Esse aumento e a esperança de novos aumentos atraem novos compradores; os novos compradores garantem novos aumentos. Outros tantos são atraídos e outros tantos também compram. E o movimento altista continua: a especulação alimenta-se de si mesma e confere a si mesma o seu próprio ímpeto" (Galbraith, 1992: 2, 12) [9]

Os setores interessados na especulação desenvolvem intensa campanha para criar uma imagem positiva da euforia financeira, o que é reproduzido de maneira exaustiva pelos meios de comunicação, autoridades governamentais e pelos mecanismos de mercado. Se por acaso alguém questiona o processo especulativo, imediatamente é desqualificado e execrado perante a sociedade: trata-se de alguém que não quer a prosperidade do País, que se incomoda o lucro das pessoas, empresas e instituições e que têm idéias obsoletas. A euforia só se encerra quando vem o colapso financeiro e os imensos prejuízos para aqueles que não se safaram antes da crise. Mas as crises especulativas têm um denominador comum: "Todas as crises envolvem um endividamento que, de uma ou outra maneira, tornou-se perigosamente desproporcional aos meios de pagamentos subjacentes" (Galbraith, 1992: 14) [10] .

A descrição de Galbraith corresponde exatamente aos dois últimos processos especulativos ocorridos nos Estados Unidos. Nos anos 90, a especulação se formou em torno das empresas ponto com, empresas de tecnologia que obtiveram enorme valorização nas bolsas. Falava-se em nova economia, comandada pelas tecnologias da informação e cuja expressão maior eram os preços das ações nas bolsas. "Na primavera de 2000, no ápice da alta do mercado de ações, a despeito do fato de as companhias de telecomunicações terem produzido menos de 3% do PIB, a capitalização de mercado (o valor de suas ações em circulação) alcançou assombrosos US$ 2,7 x 10 12 , quase 15% da soma de todas as corporações não financeiras norte-americanas" (Brenner, 2003: 22) [11] .

Essa bolha especulativa desinflou em 2001, levando enormes prejuízos para a sociedade. "Em meados de 2002, as ações de telecomunicações perderam 95% de seu valor, o que resultou no desaparecimento de aproximadamente US$ 2,5 x 10 12 da capitalização do mercado. Apenas no breve período entre o final de 2000 e meados de 2002, mais e 60 companhias faliram e a indústria de telecomunicações demitiu mais de 500 mil trabalhadores, 50% a mais do que tinha contratado durante a espetacular expansão do período entre 1996 e 2000" (Brenner, 2003: 25, 26) [12] .

A crise das empresas ponto com, como pode ser observado, foi uma espécie de avant première da crise atual que envolve o sistema capitalista, ressaltando-se que a crise das empresas de tecnologia trouxe à tona uma escandalosa fraude cometida pelas principais empresas e bancos norte-americanos, fato que vem se repetindo com mais intensidade na atual crise.

Concentremo-nos agora nos elementos constitutivos da crise atual. O governo norte-americano, através do FED, visando retomar economia que entrara em recessão após a crise de 2001, reduziu de maneira acelerada a taxa de juros, que chegou a ficar 31 meses negativa. Como a renda das famílias não aumentava, a saída para manter os elevados padrões de consumo dos norte-americanos foi a ampliação do endividamento, uma vez que é tradição nos Estados medir o sucesso individual ou familiar pelo padrão de consumo. Os baixos juros e o crédito em abundância possibilitaram a retomada da demanda, mas ao mesmo tempo criaram uma bomba de efeito retardado, uma vez que, se o crédito funciona como dinamizador da economia, em contrapartida deve ser pago em algum momento do tempo. Se as condições econômicas estiverem favoráveis, o crédito cumpre uma função especial de facilitar a produção e a demanda, mas se as taxas de juros mudam ou as condições da economia não possibilitam o aumento da renda, a inadimplência é o caminho natural de parcela expressiva dos endividados.

Marx também já advertira sobre o papel do crédito e as conseqüência de sua expansão forçada da economia. " Num sistema de produção em que toda a conexão do processo de reprodução repousa sobre o crédito, quando então o crédito subitamente cessa e passa apenas a valer o pagamento em espécie, tem de sobrevir evidentemente uma crise, uma corrida violenta aos meios de pagamento. À primeira vista a crise apresenta apenas como crise de crédito e crise monetária. E de fato trata-se apenas da conversibilidade das letras em dinheiro. Mas essas letras representam, em sua maioria, compras e vendas reais, cuja extensão, que ultrapassa de longe as necessidades sociais, está em última instância na base de toda a crise (...) Enquanto o processo de reprodução mantém a fluidez, assegurando com isso o refluxo do capital, esse crédito perdura e se expande e sua expansão se baseia sobre a expansão do próprio processo de reprodução. Tão logo ocorre uma estagnação, em conseqüência de refluxos retardados, mercados saturados, ou preços em queda, há excesso de capital industrial, mas numa forma que não pode desempenhar sua função. Massas de capital-mercadoria, mas invendáveis. Massas de capital fixo, em virtude da paralisação da reprodução, em grande parte desocupadas. O crédito contrai-se 1) porque esse capital está desocupado, isto é, paralisado em uma das fases de sua reprodução porque não pode completar sua metamorfose; 2) porque a confiança na fluidez do processo de reprodução está quebrada; 3) porque a procura por esse crédito diminui" (Marx 1983, 23-28) [13] .

As condições vantajosas do crédito, aliadas à desregulamentação, estimularam o capital especulativo a desenvolver um conjunto de inovações financeiras relacionadas com as dívidas de cartões de crédito, compra de automóveis, dívidas corporativas e, especialmente, as dívidas hipotecárias. Vale lembrar que, para facilitar a ação especulativa, o Congresso norte-americano revogou, em 1999, a Lei Glass-Steagall, que disciplinava a atividade bancária e separava os bancos comerciais dos bancos de investimento. Desregulamentado e com carta branca para criar os mais diversos tipos de inovações financeiras, o sistema financeiro correspondeu plenamente aos novos tempos e desenvolveu esquemas de engenharia financeira que beirava à insanidade.

Por exemplo, no setor imobiliário, onde a crise ficou mais conhecida, o mecanismo funcionava da seguinte maneira: os bancos até então realizavam negócios imobiliários e ficavam com as hipotecas negociadas como garantia do pagamento. Quando o cliente quitava o débito recebia de volta a hipoteca. No entanto, estimulados pela desregulamentação e pelo incentivo do próprio governo, interessado no desenvolvimento das finanças, as instituições financeiras resolveram inovar radicalmente, criando as chamadas finanças estruturadas: transformaram as hipotecas e todo tipo de divida em títulos, os empacotavam junto com outros títulos de origem diferente, e os vendiam para instituições financeiras, investidores em geral e agentes econômicos do mundo inteiro, que por sua vez, com esses títulos podiam obter empréstimos para comprar novos títulos e assim por diante, surgindo daí uma enorme alavancagem financeira especulativa.

O circuito se completava com a entrada das companhias seguradoras: para se garantir contra os riscos dos títulos, empresas e instituições em geral faziam o seguro dos títulos empacotados e as empresas de seguro, com os recursos obtidos, também participavam ativamente da ciranda financeira. Para se tornarem atrativos, os títulos derivativos (oriundos das operações securitizadas) rendiam muito mais que as taxas de juros do FED, o que proporcionava ganhos expressivos para todos que estavam no frenesi especulativo. O processo de sucuritização das dívidas era chamado de dispersão do risco. Cada agente passava o risco para a frente e embolsava as comissões e lucros – todos estavam ganhando e assim seguia a euforia financeira. Novamente Galbraith descreve com exatidão e ironia a dinâmica especulativa: "Quem está envolvido na especulação vivencia um aumento de sua riqueza. Ninguém deseja acreditar que isso é fortuito ou imerecido; todos querem crer que é o resultado da superioridade de seus insights ou intuições pessoais. O próprio aumento dos valores toma conta dos corações e mentes dos que são por ele beneficiados. A especulação suga, de uma maneira perfeitamente prática, a inteligência daqueles envolvidos" (Galbraith, 1992: 4) [14] .

Para dar solidez a esses negócios, as agências independentes de risco, especialmente as três principais, Standard Poors, Moody's e Fitch, responsáveis por 80% do mercado, realizavam a classificação desses títulos e os davam nota máxima: um tríplice A (AAA), que significava a benção do mercado e dos seus técnicos mais gabaritados para seriedade dos negócios. A classificação das agências de risco abriu espaço para que os investidores institucionais (fundos de pensão, corretoras e outras instituições oficiais regulamentadas), que só poderiam comprar títulos com esse tipo de classificação, entrassem no mercado colocando ainda mais gasolina no processo especulativo. Isso porque esses fundos e instituições, especialmente os fundos de pensão, centralizam uma enorme quantidade de recursos da sociedade, o que lhes davam um grande poder para influenciar os mercados.

Esse mecanismo (ou essa corrente da felicidade) criou um enorme boom imobiliário . Com um número cada vez maior de pessoas com créditos para adquirir casas, os preços dos imóveis aumentaram de maneira acentuada, pois a demanda por residências era maior que a capacidade de construção imobiliária. Surgia assim o efeito riqueza , as pessoas que adquiriam imóveis se tornavam mais ricas em função do aumento dos preços da habitação. Os bancos novamente utilizavam esta situação para desenvolver ainda mais a especulação: chamavam os clientes com imóveis valorizados e os ofereciam créditos correspondentes entre o valor original da hipoteca e o preço de mercado dos imóveis. Esses créditos eram geralmente investidos na compra de novos títulos empacotados, afinal todos queriam lucrar com a euforia financeira, o que aumentava ainda mais a procura por esse tipo de papéis, elevava sua valorização e os ganhos dos especuladores.

Nessa orgia especulativa, as instituições financeiras ampliaram ainda mais a especulação imobiliária, ao realizar uma verdadeira caça às pessoas para aceitar créditos imobiliários, mesmo aqueles que não tinham a menor condição para pagar os empréstimos. Isso é compreensível porque, para os bancos, o que interessava mesmo era a posse da hipoteca em carteira, pois esta logo seria transformada em títulos securitizados e vendida para outros agentes econômicos no mundo inteiro. Aliás, os bancos poderiam ganhar duplamente com esses negócios "subprime". Ao vender os títulos, livravam-se dos riscos do negócio. Caso o devedor não conseguisse pagar as prestações, então o banco arrestava a casa e vendia para outro cliente. Um dos artifícios utilizados para que a venda dos imóveis parecesse vantajosa era o sistema de pagamentos das prestações a taxas de juros flexíveis - muito baixos no início contrato, para depois ir aumentando com o tempo. A justificativa era a de que, com a valorização dos imóveis, seus proprietários teriam condições e créditos para pagar prestações mais altas.

No auge da euforia financeira, autoridades governamentais denominavam esse processo de criação de riqueza, capitalismo popular. Parecia uma imensa platéia encantada com as mágicas de profissionais habilidosos: todos estavam felizes em ganhar dinheiro a partir do nada. Praticamente o dinheiro estava se multiplicando como pé de jaboticaba: dava frutos dos troncos até os galhos menores. Para se ter uma idéia do tamanho do mercado hipotecário, basta dizer que é de cerca US$ 11 x 10 12 . Essa base, multiplicada pela especulação com títulos, mais as dívidas securitizadas dos cartões de crédito, pode ter chegado a algo próximo dos US$ 35 x 10 12 , quase três vezes o PIB dos Estados Unidos.

Os primeiros sintomas da crise

No final de 2006, iniciou-se um processo de reversão das expectativas nos Estados Unidos, em função da conjuntura econômica: nesse período, a economia norte-americana já não apresentava mais o mesmo dinamismo do período anterior. Os juros negativos ou muito baixos por longo tempo ampliaram a capacidade de compra da economia e começaram a surgir os primeiros sinais de aumento da inflação. O governo foi então reajustando a política de juros, que de 1% passou (um por cento) no período anterior, chegou a 5,25%. A combinação de desaceleração da economia, aumento de juros e queda na renda das famílias provocou um efeito dramático no mercado especulativo: a inadimplência começou a surgir nos setores dos chamados créditos subprime, foi evoluindo até se generalizar para o conjunto da economia, envolvendo dívidas como as de cartões de crédito, dívidas corporativas, entre outras. A falta de pagamento dos cartões aumentou 30% no primeiro semestre de 2007. Mas foi a crise do subprime, mercado muito maior, que acendeu a luz amarela para o conjunto do sistema especulativo: as instituições financeiras que compraram os pacotes lastreados nesses títulos começaram a perceber a possibilidade dos prejuízos.

Dispara-se então o processo de reversão da bolha especulativa: as instituições, empresas, fundos de pensão, corretoras e todos os agentes econômicos envolvidos na ciranda financeira procuraram desfazer-se dos papéis securitizados mediante a venda no mercado. Quando mais o movimento de venda aumentava, mas os preços desses papéis caiam. E quanto mais os preços iam caindo mais aumentava o movimento de venda e os preços caiam ainda mais. A notícia da crise vai se espalhando pelo conjunto do sistema e ninguém quer mais comprar esses papéis. Os preços despencam verticalmente e há um pânico generalizado entre os investidores. Agora todos sentem nos bolsos a ressaca da especulação financeira. Quando mais os preços caem, mais carregam consigam prejuízos para todas as instituições compradoras e também para as instituições que os lançaram, pois agora o valor de mercado dos seus ativos está abaixo do valor patrimonial. Nos balanços trimestrais várias empresas começam a divulgar os prejuízos. Isso leva mais pânico ao mercado, os preços dos papéis caem mais ainda e muitas empresas são obrigadas a fechar. Instaura-se o efeito pobreza , pois agora todos perderam da noite para o dia o valor potencial de seus títulos, os proprietários vêem o valor dos imóveis rebaixados, além da possibilidade de perder suas casas. Instaura-se um clima de expectativas negativas que vai gradativamente se espalhando para a economia real.

As grandes corporações também começam a sofrer enormes prejuízos e a crise já envolve o conjunto do sistema. As autoridades governamentais, buscando reduzir o pânico entre as instituições envolvidas na especulação, começam a injetar recursos na economia porque avaliam que com essa medida estará ampliando a liquidez e dando condições às instituições financeiras de evitarem uma corrida dos clientes aos guichês ou aos mouses de computadores para resgatar seus recursos. Mas a crise já é bem maior que a percepção das autoridades monetárias e sua capacidade de contorná-la. Um dos cinco maiores bancos de investimentos dos Estados Unidos, o Bear Stearns, quebrou em meio à tormenta e o FED foi obrigado a financiar sua aquisição na bacia das almas pela J. P. Morgan. Posteriormente teve que emprestar recursos pela primeira vez aos bancos de investimento (setor não regulamentado) para salvá-los da insolvência, tendo como contrapartida os títulos tóxicos, que ninguém mais queria comprar. Mas também já era tarde: logo depois o Lehman Brothers, um banco com 158 anos de existência, não teve a mesma sorte do Bear Stearns - foi à falência pura e simples. O Merril Linch foi comprado pelo Bank of América e o Goldman Sachs e o Morgan Stanley deixaram de ser bancos de investimento. Em síntese, em poucos dias os cinco maiores bancos de investimento dos EUA desapareceram do cenário econômico.

Mas a crise estava apenas no seu começo: os maiores problemas vieram quando as duas principais empresas hipotecárias, a Fannie Mae e a Freddie Mac, também foram à lona. O governo então foi obrigado a intervir abertamente e estatizar as duas instituições, num movimento envolvendo US$ 250 mil milhões. Para se ter uma idéia da importância da Fannie e da Freddie basta dizer que estas duas instituições detinham, sozinhas, US$ 5,4 x 10 12 em títulos hipotecários. Posteriormente, a maior empresa seguradora do mundo, a AIG, também não teve condições de cumprir seus compromissos e o governo foi obrigado a estatizá-la. Nessa conjuntura, centenas de instituições menores também foram à bancarrota. Em clima de pânico institucional, o secretário do Tesouro, em aliança com o FED, estruturaram um pacote global de socorro da economia de US$ 700 mil milhões. Num primeiro momento, o Congresso rejeitou o pacote e só o aprovou depois com um conjunto de emendas. O mais irônico dessa situação é que o governo Bush, antes um agressivo defensor do livre mercado e da retirada do Estado da economia, agora tornara-se o principal defensor da mão visível do Estado para socorrer o sistema financeiro com o dinheiro do contribuinte. No entanto, para revelar o caráter de classe do governo, não existe nenhum pacote financeiro para salvar os proprietários dos imóveis da inadimplência e do arrestamento de suas residências, mesmo sabendo-se que milhões de norte-americanos perderão suas casas e terão que ficar no olho da rua.

A crise não parou de crescer: se espalhou para o conjunto da Europa, cuja economia estava profundamente vinculada à economia norte-americana, pelos países da Ásia, pela Austrália e América Latina. A maior parte dos países centrais já está em recessão. Os governos da Europa, da Ásia, Austrália também já apresentaram planos gigantescos, envolvendo x 10 12 de dólares, para salvar o sistema do colapso. Os dirigentes dos principais países centrais agora falam na constituição de um novo Bretton Woods e até numa refundação do capitalismo, com o sistema financeiro devidamente regulamentado. Mais a crise é muito maior que a capacidade de regulação das autoridades governamentais e o sistema capitalista vai passar por um enorme período de dificuldades nos próximos anos.

Nesta crise, há ainda um dado que se assemelha com o processo da crise das empresas ponto com: a fraude empresarial. As instituições financeiras encontraram uma forma especial de contabilizar os negócios especulativos: passaram a colocar fora do balanço os riscos de crédito, visando ampliar a alavancagem financeira. Com essas operações fora de balanço, essas instituições ganhavam maior capacidade para realizar novos empréstimos, sem que isso implicasse legalmente numa relação de alavancagem perigosa. Por isso mesmo é que até agora ninguém tem condições de avaliar corretamente a massa de recursos especulativos, ou lixo tóxico que contamina as economias dos países centrais.

O significado da crise

Esta crise contém vários elementos de originalidade em relação às crises anteriores, fruto do próprio desenvolvimento das forças produtivas e financeiras do capitalismo contemporâneo. Ocorre num momento em que o capitalismo se transformou num sistema mundial completo e maduro. No período anterior à globalização o sistema era completo apenas no que se refere a duas variáveis da órbita da circulação: a exportação de capitais e o comércio mundial. Mas ao expandir a internacionalização da produção e das finanças mundialmente, o sistema amadureceu a reprodução do capital em escala internacional e unificou globalmente o ciclo do capital, fechando assim um processo iniciado com a revolução inglesa de 1640 (Costa, 2002) [15] . Essa performance possibilitou a constituição de um ciclo mundial único do capital, gerando uma crise sistêmica, simétrica e avassaladora, tanto nos países centrais como na periferia, o que impossibilita no curto prazo as possibilidades de fuga da crise para outras regiões como no passado.

Portanto, a crise não pode ser analisada a partir de alguns de seus aspectos específicos, tais como a crise imobiliária, a crise financeira ou a ganância dos especuladores de Wall Street. Esta é uma crise global do sistema de acumulação mundial e representa, na macroestrutura, a superacumulação de capitais e a impossibilidade de valorizá-los na esfera produtiva. "As verdadeiras crises capitalistas, qualquer que seja a sua causa inicial, são colapso da totalidade, do conjunto da estrutura da produção, do consumo, da circulação" (Campos, 2001) [16] . Por isso, as tentativas de coordenação dos governos centrais e, particularmente, dos Estados Unidos, não produzem os efeitos desejados, uma vez que esta crise expressa uma quantidade e uma qualidade diferente que as crises cíclicas tradicionais ou as grandes crises sistêmicas do século XIX e XX. Pois não se trata de falta de liquidez, de falta de crédito ou de regulação. O sistema todo está enfermo e todos os seus fundamentos estão sendo questionados pelo colapso da economia.

Nos últimos 64 anos os Estados Unidos foram o vértice do sistema mundial capitalista, o que lhe possibilitou atrair a maior parte das economias ocidentais para seu modelo de acumulação, tanto no período da vigência de Bretton Woods quanto no período iniciado com Tatcher e Reagan, mais conhecido como neoliberalismo. Portanto, como o epicentro da crise se encontra justamente no coração da economia norte-americana, esse processo arrasta consigo todos os países ligados à economia líder. E a profundidade da crise em cada nação dependerá do grau de proximidade ou subordinação à economia norte-americana. As possibilidades de saída da crise dentro do modelo estruturado nos últimos 30 anos, no curto prazo, são marginais, a não ser que ocorra no bojo dessa conjuntura uma ruptura de um determinado País em relação ao sistema de poder norte-americano.

A desregulamentação financeira, a livre mobilidade dos capitais e a construção de instrumentos securitizados e derivativos geraram um processo de especulação no qual a riqueza em circulação na da órbita das finanças é cerca de doze vezes maior que a gerada no setor produtivo, justamente o que gera valor ou riqueza nova. Para se ter uma idéia do elevado grau de especulação das finanças mundiais, é importante destacar o mais recente levantamento realizado semestralmente pelo Banco de Compensações Internacionais (BIS) sobre o valor notional (escritural) apenas dos derivativos em circulação no mundo. De acordo com o último relatório do BIS (novembro de 2008), o valor negociado no mercado de balcão com esses títulos atingiu US$ 683,7 x 10 12 . Um descolamento dessa magnitude entre as duas órbitas do grande capital é um fato inédito na história do capitalismo e não poderia ter um resultado diferente do que a crise atual do sistema, pois é impossível manter esta relação no longo prazo, até mesmo porque não existiria mais-valia suficiente para remunerar a crescente progressão da massa de recursos especulativos.

Esta é a primeira grande crise realmente completa do sistema capitalista, por isso mais complexa e potencialmente explosiva, uma vez que envolve toda a vida social do sistema capitalista – a esfera da produção, da circulação, do crédito, das dívidas públicas e privadas, do sistema social, do meio ambiente, dos valores neoliberais, da cultura individualista e, especialmente, de um determinado tipo de Estado como articulador do processo de acumulação. A crise é tão extensa que até agora nenhuma das autoridades dos países centrais teve condições de saber com exatidão a profundidade do desastre. Como não conseguem ter um diagnóstico preciso, não têm também condições de resolvê-la com os métodos tradicionais de política monetária e fiscal. Isso porque a crise é muito maior que a visão tradicional das velhas lideranças atuais do mundo capitalista, viciadas no senso comum e nas variáveis ideológicas neoliberais dos últimos 30 anos.
A crise ocorre também num momento em que sistema imperialista está fragilizado econômica e politicamente após oito anos de governo Bush, muito embora ainda possua um poderio militar maior que todos os outros países. Mas nenhum império pode se manter simplesmente pela força militar. A hegemonia não pode ser exercida por muito tempo apenas com a força bruta. Por isso, os Estados Unidos são hoje o que se pode chamar de um gigante ferido: trata-se do maior devedor do mundo, quando na década de 60 era um país credor; de um país com um déficit comercial crônico, oriundo do processo de deslocalização das indústrias para outras regiões; com um déficit fiscal cada vez maior e com as empresas e consumidores com elevados graus de endividamento.

Como sempre, as crises sistêmicas representam o momento da verdade para todos: nessas crises se revelam de maneira explícita a natureza das classes sociais, da ideologia, dos Estados e da gestão da economia. As crises também são educativas e tornam mais claras as posições ideológicas dos partidos políticos, dos movimentos sociais, dos intelectuais orgânicos e colocam por terra as dubiedades políticas, o oportunismo e o reformismo. Em tempos de crise há um aprendizado rápido do proletariado: este aprende mais em poucos meses do que em décadas de calmarias. Em tempos de calmaria as mudanças são muito pequenas, o proletariado realiza apenas lutas específicas, uma vez que a economia vai bem e o controle ideológico da burguesia é maior, mas as crises funcionam como parteiras de uma nova época, tanto para a burguesia quanto para o proletariado. As mudanças são velozes, independem da vontade das pessoas. É exatamente nas crises que se abrem as janelas de oportunidades para que o proletariado possa reafirmar seu projeto de emancipação.

As crises sistêmicas também representam um período difícil para a burguesia, pois esta se encontra desorganizada do ponto de vista econômico, seu poder político está enfraquecido e sua hegemonia moral da sociedade em questionamento. O proletariado também está na defensiva, em função da fragmentação operada pela reestruturação produtiva, pelas debilidades do movimento sindical e pelas sucessivas derrotas sofridas ao longo dos últimos 30 anos. A crise que estamos vivendo agora é um destes momentos históricos pródigos para acontecimentos inesperados, tanto por parte da burguesia como do proletariado. A crise representa o confronto aberto entre os projetos das duas classes fundamentais da sociedade. Cada classe vai buscar resolver a crise de acordo com os seus interesses e com seu projeto político de sociedade. Quanto mais grave a crise, mais há a possibilidade de um acirramento da luta de classe.

Vale ressaltar que não existe crise sem saída, não existe crise sem solução. Poderemos, por um lado, observar uma violenta ofensiva da burguesia, que se torna mais agressiva nesta época porque quer recuperar a todo custo as taxas de lucro e o controle do sistema. O exemplo do nazismo e do fascismo ainda estão bem vivos para nos advertir do que a burguesia é capaz para manter o seu domínio. Mas também é nas crises que as lutas sociais e políticas do proletariado podem ganhar uma dimensão muito maior em relação ao período anterior: setores que antes pareciam adormecidos, acomodados e envolvidos pela ideologia do capital, podem irromper na cena política com um vigor capaz de deixar perplexos não só aqueles que estavam dominados pela fatalidade do domínio burguês, mas até o próprio inimigo de classe, que é tomado de surpresa pela ousadia das massas. Trata-se do momento em que o proletariado pode passar do patamar de classe em si para classe para si.

Em termos analíticos, as crises sistêmicas desenvolvem-se obedecendo a seguinte hierarquia de acontecimentos:

Primeiro, surge a crise econômica: emergem de maneira abrupta todas as contradições do capitalismo. As principais instituições econômicas, antes sólidas e respeitáveis, desmoralizam-se diante da crise. Grandes bancos, grandes empresas, fundos de investimentos vão à bancarrota à medida que a crise se aprofunda. As bolsas de valores despencam em queda livre. O pânico se alastra entre os especuladores, empresas, instituições e a burguesia em geral. As autoridades governamentais intervêm colocando recursos públicos para tentar salvar a classe dominante. Torna-se mais claro o caráter de classe do governo. A crise se alastra para o conjunto do sistema com perdas econômicas e financeiras.

Posteriormente, vem a crise social : com a quebra das principais instituições e a incapacidade do governo em superar a crise, há um curto-circuito no metabolismo econômico, que trava o fluxo de recursos entre as várias órbitas do capital. Começa a recessão econômica, que traz consigo o desemprego, a queda na renda dos trabalhadores e as tensões sociais. Em sociedades tipo a norte-americana, onde os fundos de pensão e as bolsas de valores têm um papel preponderante na economia, os prejuízos nessas duas instituições, mais o rebaixamento dos proventos das aposentadorias, levam aos protestos dos aposentados e dos participantes dos fundos, aos quais se aliam os perdedores nas bolsas e os desempregados. Nessa conjuntura, a crise econômica, o desemprego, a queda na renda, o rebaixamento das pensões, a ampliação da miséria e o desprestígio do dólar como moeda mundial mudam radicalmente o clima psicológico das massas, que começam a se manifestar contra o governo.

Por fim, a crise política. Com as manifestações de massas crescendo e o governo sem condições para resolver a crise, inicia-se a repressão aberta contra as manifestações dos trabalhadores. No caso dos Estados Unidos, uma sociedade com longa tradição institucional da democracia burguesa, a repressão pode ampliar a luta de massas, gerando uma grave crise política. O governo terá duas opções: aprofundar a repressão e instituir um governo abertamente fascista, coisa que Bush iniciou com a Lei Patriótica, ou os setores mais esclarecidos das classes dominantes buscam uma saída ao estilo do New Deal, como no período do presidente Roosevelt. Mas o destino desse processo depende fundamentalmente da intervenção das massas no cenário político.

A crise e as perspectivas dos trabalhadores

Em todas as grandes crises ocorreram mudanças de fundo na forma de gerir o capitalismo. A grande depressão de 1873-1896 resultou no capitalismo monopolista e no imperialismo, a fase superior do capitalismo. A crise de 1930 foi a parteira do nazismo, do fascismo, da Segunda Guerra Mundial e, posteriormente, da vitória do socialismo em cerca de um terço da humanidade. Nos países capitalistas centrais, em função do perigo comunista, a burguesia foi obrigada a ceder um conjunto de direitos e garantias para os trabalhadores, cuja expressão maior foi o Estado do Bem Estar Social e a gestão keynesiana da economia. Já a crise de 1974-75 trouxe em seu bojo a derrota do movimento operário e a vitória do setor mais reacionário e parasitário do grande capital, que ao longo de 30 anos implantou o neoliberalismo, as finanças especulativas e uma enorme regressividade social que aumentou a concentração de renda e ampliou a pobreza no mundo.

Esta crise, independentemente de qual dos projetos venha a se tornar vitorioso, também trará mudanças profundas na economia e na sociedade como ocorreu nas crises anteriores. Estamos assistindo um fim de um longo ciclo da economia capitalista e o término de uma forma particular de acumulação onde o grande capital privilegiou o setor financeiro e buscou construir uma hegemonia mundial solitária a partir dos Estados Unidos. Este ciclo, na verdade, representou uma tentativa desesperada do grande capital de realizar a acumulação fugindo da lei do valor. Ao fim dessa crise, teremos uma nova situação internacional, que tanto pode ser um novo ciclo comandado por outras frações do capital, com outras formas particulares de acumulação, como pode também ocorrer profundas transformações sociais e políticas dirigidas pelo proletariado. Tudo depende de como os trabalhadores e suas vanguardas intervirão no processo que se abre com a atual crise.

Os trabalhadores não poderão deixar de levar em conta que o capitalismo é um sistema que tem uma extraordinária capacidade de adaptação e, por mais paradoxal que pareça, é exatamente nos períodos de crise que o sistema se recicla, queimando, concentrando e centralizando capitais para alcançar um patamar superior. Até mesmo nas grandes crises depressivas, quando houve possibilidade de questionamento mais profundo do sistema, o capitalismo encontrou meios de se adaptar às circunstâncias e sair vitorioso. Trata-se de um inimigo esperto, que acumulou uma enorme experiência com as crises passadas. Por isso, tanto uma vitória da burguesia quanto uma perspectiva de transformação fazem parte do jogo de possibilidade para as duas classes em disputa.

É importante ressaltar ainda que esta crise, por suas dimensões, vai colocar em questionamento a hegemonia norte-americana e o dólar como moeda mundial. Mesmo que isto ainda não esteja plenamente configurado em função do próprio curso da crise, é insustentável no longo prazo um país manter sua hegemonia baseada numa moeda insolvente e no poderio militar. Hoje, a economia dos Estados Unidos não apresenta o mesmo dinamismo que atingia no passado e sua moeda tem valor apenas fiduciário. Essa situação é insustentável diante da crise econômica e de seus desdobramentos, tanto do ponto de vista econômico quanto político. Quanto mais se acirrar a crise, mais haverá a possibilidade de questionamento da hegemonia norte-americana e um acirramento da disputa inter-imperialista, pois a crise pode gerar um clima de salve-se quem puder.

Existe ainda uma possibilidade concreta de uma maxi-desvalorização do dólar ou de um calote generalizado da dívida externa norte-americana, que está por volta de US$ 9,5 x 10 12 ou 72% do PIB, sendo que desse total mais de US$ 2,5 x 10 12 estão com a China e o Japão. Não se trata de uma possibilidade quimérica: todos devem lembrar que em 1971 o presidente Nixon acabou unilateralmente com a paridade dólar-ouro, o que significou um enorme calote mundial. Se isso ocorrer, a crise se aprofundará de tal maneira que existe a possibilidade de aventuras militares por parte dos Estados Unidos para restabelecer a ordem no sistema. No entanto, este não é a tendência principal em virtude de os Estados Unidos já estarem realizando duas guerras – uma no Afeganistão e outra no Iraque, com derrotas militares e políticas. Só numa situação de extremo desespero seria capaz de realizar outras aventuras militares.

Em todos os momentos de crise desse tipo surgem os questionamentos teóricos, as indefinições paralisadoras, os oportunismos e vacilações de toda ordem. Os que não querem lutar costumam afirmar que esta é apenas mais uma crise do capitalismo e que esse modo de produção, ao final do processo, retomará seu curso num patamar superior como o fez ao longo de sua história. Outros sentenciam confiantes que esta é a crise final do capitalismo. Nós entendemos que as duas posições estão equivocadas. A primeira porque considera na prática o capitalismo um sistema eterno e, por isso mesmo, apenas luta por algumas reformas para melhorar a vida do povo. O segundo tem um costume recorrente de transformar toda crise do capitalismo em crise final. E quando não ocorre a revolução, creditam seus erros de avaliação não a uma análise incorreta da realidade, mas à falta de direção do movimento.

Nós entendemos dialeticamente que as crises e, especialmente, crise como esta, são sempre oportunidades para que o proletariado possa contestar a ordem burguesa. Mas isso não significa que esta crise se transformará em revolução. Quem vai decidir o destino da crise é a capacidade do proletariado de irromper na cena política de forma independente, com um grau de força tal que seja capaz de derrotar a burguesia e conquistar a direção política da sociedade. Nós entendemos que há condições objetivas para a retomada do movimento de massas em caráter mundial e a possibilidade de transformação do sistema capitalista. Ao contrário do período de Lênin, que imaginava que o capitalismo monopolista seria a ante-sala da revolução socialista, acreditamos que somente agora quando o capitalismo se transformou num sistema mundial completo e maduro, tendo em vista que internacionalizou a produção e as finanças e unificou globalmente o ciclo do capital, estão dadas as condições para a revolução mundial. Nessa perspectiva, estamos muito mais próximos de uma nova sociedade do que estávamos no início do capitalismo monopolista.

Ou seja, como tudo na natureza e na sociedade está sob a lei da dialética, podemos dizer que o capitalismo, ao revolucionar as formas produtivas e as finanças em termos mundiais, cumpriu seu papel histórico e tende, como ocorreu em outras épocas históricas, a passar pelo mesmo processo de transformação que as formações sócio-econômicas anteriores. Como dizíamos em nosso trabalho de 2002 [17] , as condições para esta mudança de qualidade só estariam maduras quando a crise atingisse o coração do sistema, onde potencialmente pulsa mais forte a luta de classe. Agora a crise atingiu o coração do sistema e chegou a hora da verdade para a burguesia e o proletariado.

Outro ponto importante é o fato de que os desdobramentos desta crise vão atingir profundamente os trabalhadores em termos do emprego e da renda e vão acirrar a luta de classes nos países centrais e na periferia. Ao contrário do senso comum e de muitos companheiros da esquerda, nós achamos que o potencial de luta da classe operária e dos trabalhadores é muito mais forte nos países centrais que na periferia, pois é exatamente nos países centrais onde se encontra a classe operária mais avançada do ponto de vista das forças produtivas e onde o capitalismo está mais maduro. É um teatro de operações muito mais favorável para a luta de classes que nos países atrasados. É bem verdade que os elos débeis continuarão cumprindo um papel essencial no desgaste e fustigamento do grande capital, mas as transformações qualitativas do sistema capitalista serão muito mais definitivas se ocorrerem no coração do sistema.

Portanto, a ação da classe operária e dos trabalhadores em geral vai depender não só das condições objetivas detonadas pela própria crise, mas especialmente das condições subjetivas para a emergência dos trabalhadores como sujeitos históricos. Se olharmos apenas a aparência dos fenômenos, poderemos dizer que é muito difícil um levantamento dos trabalhadores nos países centrais. Os 30 anos de neoliberalismo foram anos de derrota: fragmentaram a classe operária, enfraqueceram o movimento sindical e desorientaram, com poucas exceções, suas vanguardas políticas. Além disso, os trabalhadores perderam a âncora socialista e o grande capital avançou sobre os direitos e garantias conquistados historicamente. No entanto, as crises são fenômenos que trazem em seu bojo ações inesperadas das classes trabalhadoras, que possibilitam um aprendizado intensivo da luta de classes. Não está fora de cogitação a emergência de um novo movimento operário e uma nova vanguarda política, criada a partir dos fragmentos das que existem ou da criação de novas vanguardas operárias, que voltem a colocar na ordem do dia a superação do capitalismo e a implantação do socialismo como uma nova forma de sociabilidade.

Nós estamos num desses momentos fundamentais da história em que não deve haver espaço para a vacilação. Os trabalhadores não podem cair no conto de que é possível reformar o capitalismo ou torná-lo mais humano. Esse sistema está condenado pela história. Devemos levar ainda em conta que o modo de produção capitalista para sair da crise, crescer novamente e reorganizar a sociedade tem que ameaçar a vida e continuidade da espécie humana. Cada vez fica mais claro: hoje capitalismo e humanidade estão em contradição. Para o capitalismo se manter é necessário ameaçar a humanidade e não resta para a humanidade outra opção do que procurar se salvar através da superação do capitalismo. Esta é a disjuntiva que se coloca neste momento para o proletariado. Essa crise é da burguesia e não dos trabalhadores. O proletariado deve aproveitar esse momento histórico para apresentar o seu projeto de sociedade e disputar com a burguesia o futuro da humanidade, pois só o proletariado tem condições de construir uma sociedade da abundância e da felicidade.

A burguesia vai utilizar todas as suas ferramentas para sair vitoriosa da crise. Vai fazer todo o possível para manter os seus interesses de classe, seus objetivos estratégicos - econômicos, sociais e políticos -, de forma a recuperar as taxas de lucro e a disciplina social perdida durante os momentos da turbulência. Vai tentar implantar a ferro e fogo o seu projeto e, nesse sentido, não vacilará um minuto, como a história tem nos ensinado, mesmo que para tanto tenha que provocar guerras e destruições em massa. Vai tentar sair da crise rebaixando salários, direitos e garantias dos trabalhadores, concentrando a renda, realizando a mercantilização da vida, incentivando o complexo industrial-militar destruindo ainda mais o meio ambiente, ampliando a miséria e a violência contra a população.

Nesse momento especial da luta de classe os trabalhadores devem se preparar da melhor maneira possível para emergir na luta com um projeto emancipador e revolucionário. Não existe empate na luta de classe: na situação em que estamos vivendo, ou a burguesia sai vitoriosa e retoma o capitalismo num patamar superior; ou o proletariado derrota a burguesia e inicia a construção da nova sociedade com seus aliados fundamentais. Apesar da crise estar abalando todo o sistema, os trabalhadores não devem ficar de braços cruzados esperando o capitalismo cair de maduro. O capitalismo só cairá se for derrubado e esta é a tarefa do proletariado neste momento da história. Portanto, mãos à obra camaradas!

1- CAMPOS, Lauro. A Crise Completa – A Economia Política do Não. São Paulo: Boitempo, 2001.
2- MARX, Karl, O Capital, Vol. I, Tomo I. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
3- MARX, Karl. Teorias da Mais-Valia, Vol. III. Rio de Janeiro: Difel, 1983.
4- MARX, Karl. O Capital. Vol. III, Tomo I. São Paulo: 1984.
5- WOLFF, Rick. A Economia Subprime dos EUA. http://resistir.info/eua/economia_subprime.html . Acesso em 30 de outubro de 2008.
6- VALOR Econômico. São Paulo, 29/10/2008.
7- MOORE, Walter. La estafa global de los Estados Unidos está llegando a su fim. www.socialismo-o-barbarie.org. Acesso em 05 de fevereiro de 2008.
8- BIS (Bank for International Settlement). OTC derivatives market activity in the first half of 2008. Switzerland: novembro, 2008.
9- GALBRAITH, John Kennet. Uma Breve História da Euforia Financeira. São Paulo: Pioneira, 1992.
10- GALBRAITH, op. cit.
11- BRENNER, Robert. O Boon e a Bolha – O Estados Unidos na economia mundial. Rio de Janeiro: Record, 2003
12- BRENNER, op. cit.
13- MARX, Karl. O Capital. Vol. III. Tomo 2. São Paulo: Abril Cultural, 1985.
14- GALBRAITH, op. cit.
15- COSTA, Edmilson. A globalização neoliberal e as novas dimensões do capitalismo contemporâneo. Tese de pós-doutorado realizada no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. Campinas, 2002.
16- CAMPOS, op. cit.
17- Trata-se da tese de pós-doutoramento realizada no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, op. cit.

[*] Doutor em Economia pela Universidade de Campinas (Unicamp), com pós-doutorado no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da mesma Instituição. É autor de O imperialismo (Global, 1987), A Política Salarial no Brasil (Boitempo, 1997), Um Projeto Para o Brasil (Tecno-Científica, 1998) e A Globalização e o Capitalismo Contemporâneo (Expressão Popular, 2008). É diretor de pesquisa do Instituto Caio Prado Jr.. Trabalho apresentado no Seminário Nacional sobre A Crise Mundial e os Trabalhadores, realizado em 01 de novembro em São Paulo, promovido pelo Instituto Caio Prado Jr. .

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05/Fev/09