sexta-feira, 3 de abril de 2009

Separatismo e Imperialismo no Tibete

Separatismo e imperialismo no Tibete
(Artigo publicado na Revista Sem Terra n. 46, agosto/setembro de 2008, publicada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra-MST)

Marcelo Buzetto*

''Por suas relações históricas e geográficas, nem o Tibete pode ser independente da China, nem a China do Tibete. Assim, ambos serão beneficiados se permanecerem unidos, enquanto a separação prejudicará a ambos.''
Panchen Erdeni - 1929 (segundo lama na hierarquia do budismo tibetano)

Em março deste ano o mundo foi surpreendido por manifestações que, partindo de Lhasa, capital do Tibete, Região Autônoma da China, se multiplicaram em outros países, principalmente pelos locais por onde passou a Tocha Olímpica, num ritual que teve início na Grécia e terminou na China, sede dos jogos deste ano.

As manifestações iniciadas por grupos contrários ao governo chinês na capital tibetana levantaram novamente a bandeira da “independência do Tibete”. Houve confrontos entre cidadão pró-China e militantes “pró-independência”. A agressões e a violência dos manifestantes foi dirigida não só contra prédios públicos, carros, lojas, mas também foram atacados e mortos cidadãos tibetanos que, concordando ou não com a forma como o governo chinês têm se posicionado em relação à região, não defendiam, como principal reivindicação, a independência. Apesar disto, somente circularam amplamente pelo mundo imagens da repressão das forças militares chinesas contra os protestos.

O Tibete sempre foi um território em disputa. Sua história é marcada por conflitos internos, invasões estrangeiras, lutas entre diversas facções políticas e religiosas pelo controle das terras e do poder político, etc. No século XX o imperialismo britânico, em sua ofensiva pela Ásia, também tentou seduzir lideranças tibetanas e consolidar na região sua influência. Desde a vitória da Revolução Russa de 1917 a Ásia e o Oriente começaram a ser vistos de outra maneira pelas principais potências capitalistas. O medo de expansão da influência da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) fez com que cada território no oriente fosse disputado a ferro e fogo pelas diversas forças políticas, econômicas, culturais e militares que viviam neste pedaço do mundo.

O Tibete é parte da China há mais de 700 anos, mas a impressão que temos, se nossa fonte de informação é exclusivamente o noticiário das grandes rede de TV ou dos jornais da chamada “grande imprensa” é que essa região foi invadida pela China após a Revolução de 1949, onde os comunistas, dirigidos por Mao Tse-Tung, iniciaram a “dominação do Tibete”. Tal versão não é só propagandeada por veículos de comunicação considerados conservadores, reacionários ou pró-imperialistas. Também setores que se consideram progressistas e até de esquerda foram seduzidos pela falsa idéia de dominação chinesa no Tibete.

Durante o século XX a região vivenciou inúmeros conflitos para garantir sua autonomia e até mesmo sua independência. Foram momentos de enfrentamentos militares e negociações com forças chinesas e estrangeiras, dependendo do momento e da situação. Após a vitória da Revolução de 1949, o Partido Comunista Chinês (PCCh) e o Exército Popular de Libertação (EPL) iniciaram um processo de transformações econômicas, sociais, políticas e culturais nunca antes visto na história da China.

O avanço da revolução chinesa para todo o território nacional despertou preocupações entre os monges budistas tibetanos, principalmente entre aqueles que estavam na direção do regime teocrático-feudal representado pela figura de Tenzin Gyatso (14º. Dalai Lama). Considerados como a reencarnação do Buda da Compaixão, os Dalai Lama (“Oceano de Sabedoria”) são, para a doutrina budista, seres iluminados que decidiram renascer para servir à humanidade. Nascido em 1935, o atual Dalai Lama se auto-exilou do Tibete em 1959, dez anos depois da revolução popular que tomava conta de toda a China.

Ao contrário do pensam muitos defensores do atual Dalai Lama, que se apresenta para o mundo como defensor da democracia, da justiça e da liberdade para o povo Tibetano, não era este o cenário quando ele própria governava a região. O Tibete, em 1949, vivia sob um regime teocrático-feudal, não existiam liberdades democráticas, nunca o povo tinha participado de qualquer processo eleitoral, não existia liberdade de organização e de crítica, reinava uma tirania onde a maioria da população estava submetido ao domínio de relações de servidão e escravidão, presentes no cotidiano dos monastérios budistas e nas fazendas, verdadeiros latifúndios concentrados nas mãos de poucas pessoas e famílias ligadas à nobreza e ao monges próximos de Dalai Lama. As punições contra servos que reclamassem das condições de vida e de trabalho eram as piores possíveis. Variavam dos castigos físicos até a mutilação de algum membro, a prisão ou a morte. As torturas eram parte do dia-a-dia dos servos, os mais pobres e a maioria entre a população da época.

A revolução chinesa foi bastante generosa com o povo Tibetano. Por ordem de Mao, proclamado presidente da República Popular da China em outubro de 1949, teve início uma negociação com os dirigentes budistas do Tibete. Entre 1949 e 1950 explodem lutas internas entre grupos da classe dominante tibetana que eram a favor da negociação com a China e grupos contrários a qualquer acordo. Estes últimos, considerados como parte da “facção pró-ocidental”, influenciados pela Inglaterra, decidem pela guerra contra o Exército Popular de Libertação (EPL). Em 23 de maio de 1951, na cidade de Pequim, é assinado o “Acordo de 17 Artigos”, que reconhece a unidade nacional chinesa, tendo o Tibete como parte integrante da nação. Esse acordo visava implementar uma reforma democrática e pacífica no Tibete, destruindo as instituições feudais e implementando, de maneira negociada, as transformações das relações econômicas e sociais existentes, bem como construindo uma nova estrutura de poder político, resultante das mudanças que viriam. Mao Tse-Tung se encontra pessoalmente com o Dalai Lama, e propõe que o ritmo das mudanças respeite a cultura e as tradições do povo tibetano. Em 24 de outubro de 1951, após aprovar pessoalmente o acordo, Dalai Lama volta para a capital do Tibete, Lhasa. Interessante notar que, sobre este período, enquanto o EPL avançava pelo território tibetano, o autor do livro – que virou filme - Sete Anos no Tibet, o austríaco e militante nazista Heinrich Harrer, reconhecia que “as tropas chinesas se mostraram disciplinadas e tolerantes e os tibetanos que foram capturados e depois libertados diziam que haviam sido bem tratados”. O clima de negociação pacífica era tão verdadeiro que o próprio Dalai Lama foi indicado pelo governo revolucionário para fazer parte da Assembléia Nacional Popular da China, que redigiu a primeira Constituição da República Popular, em 1954, onde o mesmo foi eleito um dos vice-presidentes da Comissão Permanente, representando o povo tibetano. Já em 1956, Dalai Lama ficou responsável para organizar politicamente o Tibete enquanto uma região autônoma da China.

Os conflitos entre Dalai Lama e seus aliados e o governo revolucionário foram se radicalizando à medida que avançavam leis e reformas democráticas e populares, como foi o caso da reforma agrária. É de conhecimento público que a base social do PCCh e do EPL era formada pelo proletariado e pelas massas populares, tendo destaque nesse período a participação dos camponeses, que lutaram durante toda a guerra civil e a guerra revolucionária antiimperialista ao lado de Mao Tse-Tung. Os camponeses pobres e médios esperavam que, com a vitória da revolução, o sonho de poder trabalhar com dignidade na terra fosse finalmente realizado. Além deles, os servos, que não tinham liberdade nenhuma, agora conquistavam seu pedaço de terra para viver com sua família. A reforma agrária na China, resultado da revolução, ia, aos poucos, se transformando em realidade. Mas os nobres tibetanos e os monges ligados ao Dalai Lama não esperavam, e não aceitavam que seus interesses econômicos e privilégios fossem atingidos pelas mudanças.

Segundo Duarte Pereira, no texto Polêmica sobre o Tibete (em “China: 50 anos de República Popular”, Ed. Anita Garibaldi), “ainda em 1959, os lamas de camada superior, os nobres leigos e seus agentes representavam 5% da população; os servos e escravos correspondiam a 95% (...) Das terras agricultáveis o governo local detinha e administrava diretamente 38,9%; os mosteiros, 36,8%; os aristocratas leigos, 24%. A pequenos camponeses cabiam os 0,3%”. Portanto, mesmo depois de dez anos, uma das principais medidas da revolução ainda não havia sido implantada no Tibete. A urgência da implenentação de um programa de reformas democráticas e populares, tendo como centro a reforma agrária, foi o elemento fundamental que separou o governo chinês da época de Dalai Lama e seus aliados. Não foi nenhuma questão relacionada à ausência de democracia, de liberdade, etc, até porquê as massas populares viviam um momento de intensa participação política e conscientização, bastante diferente do que ocorre hoje na China.

Durante a Guerra-Fria os EUA participaram ativamente nas tentativas de estimular movimentos separatistas no Tibete, inclusive treinando militarmente militantes pró-independência em seu território, dando dinheiro para financiar rebeliões, etc. Os vínculos entre Dalai Lama e CIA/governo do EUA são amplamente conhecidos. Aproveitando-se da crise no Leste Europeu na URSS, o governo dos EUA patrocinou a candidatura de Dalai Lama, em 1989, para o Prêmio Nobel da Paz. Em 2003, em mais um gesto de retribuição do apoio estadunidense, o “pacifista” Dalai Lama afirma que “é muito cedo para dizer que a guerra no Iraque foi um erro”, e que “é preciso combater o terrorismo”. Ao lado do Secretário de Estado Collin Powell e do presidente dos EUA, George Bush, Dalai Lama sorri para mais uma foto junto com seus financiadores.

De fato precisamos entender melhor o Oriente, a China e o Tibete. O que sabemos é que se a China se consolidar como a principal potência econômica do mundo no século XXI, será a primeira vez que isso ocorre sem que o país que alcança este título dispare um único canhão ou míssel, fato que deve ser levado em conta nas reflexões sobre as relações internacionais. As contradições e conflitos no interior da China e do Tibete adquirem uma importância estratégica para todas as forças políticas e sociais que lutam para construir uma nova sociedade. Nossa reflexão deve sempre levar em consideração quais são os interesses da classe trabalhadora nessa disputa pelo Tibete? Que o governo da China na atualidade vive uma situação bem distinta do que foram os primeiros anos da revolução, nós já sabemos. Quais são as principais contradições existentes? Quais são as contradições que estão sendo geradas no interior da China atual? Quais são as forças sociais e políticas em luta no interior do “dragão chinês” e quais são suas propostas para resolver os problemas atuais? Algumas perguntas que visam estimular nossa reflexão para que não sejamos seduzidos por uma análise simplista e/ou ingênua, que coloca os trabalhadores e trabalhadoras numa condição de subordinação às idéias do pacifismo pequeno-burguês e contra-revolucionário, que busca mobilizar setores importantes da humanidade para defender os privilégios dos que querem a separação do Tibete enquanto nada falam e nada fazem pelos palestinos oprimidos por Israel, pelos norte-irlandeses, oprimidos pela Inglaterra ou pelos bascos, oprimidos pela Espanha.

Nessas Olimpíadas de 2008, estarão presentes as diversas posições políticas sobre o Tibete. Esperamos que o povo chinês saiba usar sua sabedoria e coragem para resolver seus problemas internos numa perspectiva claramente progressista e transformadora, pois não haverá socialismo possível no mundo sem a participação ativa e consciente do proletariado e das massas populares desta grande nação.

* Doutorando em Ciências Sociais PUC/SP, professor de Geopolítica no curso de Relações Internacionais do Centro Universitário Fundação Santo André e da disciplina China:a nova potência do século XXI? Na Universidade Metodista de São Paulo (UMESP-SBC).